Balas, Batom e Concreto

A porra do mundo estava acabando do lado de fora. Ou talvez fosse só a Favela das Malvinas mostrando os dentes, como sempre fazia. Balas traçantes riscando o céu cinzento de merda do Rio de Janeiro, ricocheteando nas paredes de tijolo sem reboco desse barraco imundo onde estávamos encurralados. Eu, Robert, sargento do glorioso Exército Brasileiro – que piada –, e mais meia dúzia de fodidos do meu pelotão e acompanhando um grupamento tático de PMs do BOPE que estavam perdidos entre os becos e vielas. Cheiro de pólvora, concreto pulverizado e medo. O medo tinha um cheiro azedo, quase doce. Patético.

Um 7.62 estilhaçou o que restava da janela improvisada com plástico bolha. Me joguei no chão sujo, sentindo a poeira e sei lá mais que porra de detrito arranhar meu rosto. Adrenalina? Sim, corria solta, um coquetel químico vagabundo que te deixava alerta e estúpido ao mesmo tempo. Mas morrer aqui? Agora? Foda-se. Sério. Que diferença faria? Mais um número na estatística dessa guerra urbana de merda que ninguém nunca vai vencer.

Minha mente, essa filha da puta traiçoeira, decidiu que era uma ótima hora pra rebobinar a fita. Como começou essa merda toda? Ah, claro. Café. Sempre começa com café. Aquele líquido intragável da cantina do quartel em Deodoro às cinco da manhã. Forte, amargo, feito pra te acordar na porrada. Depois, a preleção. Blá, blá, blá, operação de “pacificação” nas Malvinas. Apoio à PM. Tradução: vamos nós, os “profissionais” do Exército, para fazer o papel de moderadores da polícia, coisa que só existe no papel, pois nesse ambiente, enquanto nós caminhamos eles correm de costas e dão duas voltas na nossa frente.

Lembro de arrumar o equipamento. O ritual quase sagrado. Verificar o fuzil M4, limpar, lubrificar. Cada peça no lugar. Colete balístico pesado pra caralho, ajustado no corpo. Capacete. Granadas. Facão na bota. A câmera corporal, essa testemunha eletrônica cagueta, presa no peito. Testei a gravação. Luzinha verde piscando. Ótimo. Mais uma camada de burocracia pra provar que você não é um assassino sádico quando a merda voa na sua cara.

Enquanto me preparava, ouvi o cabo Silva, um moleque recruta com cara de quem ainda mama na mãe, falando com o soldado Pereira. “Porra, Pereira, mó cagaço de subir o morro. Diz que as novinha lá são tudo envolvida.” Pereira, um pouco mais cascudo, riu. “Relaxa, Silva. Se a gente voltar inteiro, te pago uma puta lá na Vila Mimosa. Lá elas não atiram de volta.” Idiotas. Falando de mulher como se fossem gado. Mas no fundo, o medo era o mesmo. O medo de não voltar. O medo da vala comum.

E a polícia? Ah, a polícia. Nossos “parceiros”. Confiar neles? Nem fodendo. Bando de viciados em adrenalina que fazem merda em cima de merda seguindo seus impulsos insanos. Mas lá estávamos nós, lado a lado. A vida deles nas nossas mãos, a nossa nas deles. Uma piada de mau gosto escrita com sangue.

De volta ao presente fedorento. Um silêncio súbito lá fora. Tenso. O tipo de silêncio que precede a tempestade. “Atenção!” gritei, a voz rouca. “Vão tentar invadir!”

E vieram. Três ou quatro sombras se movendo rápido entre os becos lá embaixo. Rajadas de AK-47 varrendo nossa posição. O som ensurdecedor. Respondi com a M4, fogo controlado, três tiros por vez. Vi um deles cair, largando o fuzil. Os outros recuaram, atirando a esmo.

“Filhos da puta!” gritou o tenente da PM, um bigodudo com cara de poucos amigos, descarregando a pistola pela fresta na parede.

E então, o baque surdo. Ao meu lado. Virei rápido. Bianca. Soldado Bianca, da PM. Caída no chão. A mão apertando a lateral do corpo, logo abaixo do colete. O sangue. Escuro, grosso, manchando a farda azul como uma pintura abstrata macabra. Merda. Merda. Merda.

“Bianca!” rastejei até ela, as balas ainda zunindo sobre nossas cabeças. “Fala comigo, porra!”

Ela gemeu, o rosto pálido, contorcido de dor. “Pegou… filho da puta… pegou…”

Rasguei a lateral da farda dela. O estrago era feio. Um buraco irregular, sangrando pra caralho. “Pressão!” gritei pra ela, pegando um pacote de gaze do meu kit. “Aguenta firme, porra!”

Estava puto. Puto com os bandidos, puto com a operação, puto com o Exército, puto com a PM, puto com a Bianca por ser estúpida o suficiente pra levar um tiro. Puto comigo mesmo por estar ali, no meio daquela merda toda, tentando salvar uma PM teimosa enquanto o mundo desabava.

E claro, minha mente filha da puta resolveu passear de novo. Flashback. Porra.

Uns seis meses atrás. Voltando de outra operação conjunta fudida em algum buraco esquecido da Baixada. Exaustos, sujos, fedendo a mofo e adrenalina velha. Decidimos parar pra beber. Ideia de merda, claro. Mas quem pensa direito depois de passar 12 horas trocando tiro com fantasma?

Fomos parar num pagode mequetrefe no Recreio. Cerveja quente, samba desafinado, gente suada se esfregando. O paraíso. Bianca estava lá, claro. Sempre estava onde a merda acontecia. E ela estava… diferente. Sem a farda, com um vestido preto curto que deixava pouco pra imaginação. Dançava como se não houvesse amanhã, rebolando ao som do pandeiro com uma morena alta, curvilínea, que parecia ter saído de uma capa de revista masculina.

Eu e Bianca nos olhamos. O mesmo pensamento. A mesma caça. A morena. Começou a disputa silenciosa. Um olhar, um sorriso, uma cerveja oferecida. Tensão no ar. Quem levaria o troféu? Eu, o sargento experiente, cínico, com lábia de cafajeste? Ou Bianca, a PM gata, com aquele jeito meio moleca, meio predadora?

Ela ganhou. Óbvio. Mulher com mulher, a química é outra. Vi as duas se agarrando no canto escuro do bar, os lábios se encontrando com uma fome que me deixou de pau duro e puto ao mesmo tempo. Fui pro balcão pedir mais uma dose de dignidade perdida em forma de cachaça barata.

Acabamos no mesmo hotel de beira de estrada. Coincidência? Porra nenhuma. Bianca tinha planejado. Ela sempre planejava. Dividimos um quarto pra economizar. Ou pra me torturar. Provavelmente os dois.

Elas entraram no quarto rindo, de mãos dadas. Se trancaram no banheiro. Ouvi os chuveiros ligados, risadas abafadas, gemidos baixos. Fiquei ali, sentado na poltrona puída, ouvindo a trilha sonora da minha derrota. Imaginei as duas lá dentro. A pele molhada, os corpos se explorando. Bianca, com aquela boca que sabia ser doce e cruel, devorando a morena. A imagem era torturante e excitante. Pensei em arrombar a porta, entrar na festa. Foder as duas. Mostrar quem mandava. Mas o cansaço e a cachaça me venceram. Apaguei ali mesmo, na poltrona.

Acordei com o sol na cara e o som de risadas. Abri os olhos. As duas. Circulando pelo quarto. Só de calcinha. Bianca com uma de renda preta minúscula, a morena com uma fio dental branca. Desfilaram na minha frente como se eu fosse invisível. Pegaram café na máquina velha do corredor e voltaram, rindo, comentando a noite. Ignorei. Levantei, fui ao banheiro lavar o rosto, tentando apagar a imagem delas da minha cabeça fodida.

Quando voltei, elas estavam sentadas na cama, dividindo um cigarro. “Bom dia, Cinderela,” Bianca zombou. “Perdeu a festa ontem à noite.”

“Vão se foder,” resmunguei, pegando minha mochila.

Elas riram e partiram pra cima de mim. Brincadeira idiota. Guerra de travesseiros, almofadas voando. Acabamos os três embolados no chão, rindo como idiotas. Por um segundo, a tensão sumiu. Éramos só três pessoas fudidas tentando sobreviver a mais um dia.

De volta ao inferno presente. Bianca gemeu de novo, me tirando do devaneio. O sangramento não parava. Apliquei mais pressão com a gaze ensopada. “Cadê a porra do resgate?” gritei pro nada.

Os tiros lá fora se intensificaram. Rajadas contínuas. Parecia que a favela inteira tinha decidido descarregar a munição em cima do nosso barraco de merda.

“Aguenta, Bianca,” murmurei, mais pra mim do que pra ela. Analisei o rosto dela. Pálido, suado, mas os olhos ainda tinham aquela teimosia fodida. Ela não ia morrer ali. Não se eu pudesse evitar. Por quê? Amizade? Porra nenhuma. Talvez só orgulho. Não ia deixar um dos meus – mesmo que fosse uma PM teimosa – morrer na minha frente.

Ouvimos o som. Distante no início, depois mais perto. Hélices cortando o ar. Helicóptero. “Reforço!” gritou o tenente PM.

E então, a porta do barraco explodiu pra dentro. Uma chuva de lascas de madeira e poeira. Instintivamente, me joguei sobre Bianca, protegendo-a com meu corpo. Ouvi gritos, mais tiros.

“FOGO AMIGO, SEUS FILHOS DA PUTA! FOGO AMIGO!” berrei, a garganta arranhando.

Os tiros pararam. A poeira baixou. Na porta arrombada, a silhueta de soldados do Batalhão de Choque. Caras tensas, fuzis apontados.

“Identifiquem-se!” gritou um deles.

“Sargento Robert, Exército! Temos um policial ferido! Cessar fogo, caralho!”

Demorou alguns segundos tensos até eles baixarem as armas. Acharam que era um ponto fortificado dos bandidos. Incompetentes do caralho. Quase nos mataram.

Logo depois, o barulho inconfundível se aproximando. O Caveirão. O blindado da PM, nosso táxi pro inferno e de volta. Parou na viela estreita lá embaixo, as portas se abrindo.

“Evacuar! Feridos primeiro!” ordenou o tenente.

Carregamos Bianca numa maca improvisada. Ela estava consciente, mas fraca. Perdeu sangue demais. Enquanto a levavam para o blindado, ela me olhou.

“Robert…” ela começou.

“Cala a boca e não morre, porra,” cortei.

Ela deu um sorriso fraco. “Não vou… perder a operação de amanhã… nem fodendo…”

Teimosa do caralho. O Caveirão partiu, levando os feridos. Corri atrás, junto com o resto do pelotão e os PMs que sobraram. Precisávamos dar apoio tático, garantir a retirada.

Corremos pelos becos fedorentos, trocando tiros esporádicos, até chegarmos ao asfalto, à “civilização”. Várias viaturas, ambulâncias improvisadas, um caos organizado. Vi levarem Bianca para uma ambulância.

Ela me viu correndo em direção a uma viatura pra continuar o apoio. Gritou alguma coisa, puta da vida. Provavelmente xingando por ter que ir pro hospital enquanto a “festa” continuava.

Entrei na viatura. O cheiro de sangue e adrenalina ainda no ar. Olhei para trás, para a ambulância se afastando. Bianca. Forte, teimosa, fodida. Uma boa policial. Uma amiga complicada. Talvez a única pessoa nesse inferno que entendia um pouco da minha própria merda.

O rádio da viatura cuspiu ordens. Nova posição. Novos alvos. A guerra continuava. E eu? Eu continuava aqui. Vivo. Por enquanto. Foda-se o resto.

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