Domingo de merda. Chuva caindo como se o céu tivesse decidido mijar em cima do Rio de Janeiro inteiro. Eu, Sargento Robert, preso na entrada do Corpo da Guarda, numa sala fedorenta do quartel em Deodoro, observando a água formar poças no asfalto rachado. Quatro horas de permanência e nada além do barulho da chuva batendo na lataria do teto.
Vocês já sentiram aquele tédio que corrói as entranhas? Que te faz torcer pra algum filho da puta tentar pular o muro só pra você ter o que fazer? Pois é. Eu estava lá, fumando meu décimo cigarro, rezando pra algum ônibus sendo assaltado bater no portão do quartel. Qualquer coisa pra quebrar a monotonia daquele domingo encharcado.
Os soldados de plantão não estavam muito melhores. Três moleques recém-saídos do treinamento básico, com cara de quem ainda mamava nas tetas da mãe. Jogando baralho num canto, falando merda sobre mulheres que provavelmente só viram em revistas.
Foi quando chegou a troca de turno. Dois soldados encharcados entraram na guarita, sacudindo a água como cachorros. Mendonça e Vieira. Já conhecia os dois. Não eram tão verdes quanto os outros. Tinham visto alguma coisa da vida.
“Puta que pariu, que chuva do caralho,” Mendonça resmungou, tirando o quepe ensopado.
“Sargento,” Vieira bateu continência, água escorrendo pelo rosto. “Permissão para trocar o uniforme.”
“Concedida,” respondi, sem tirar os olhos da janela embaçada. “Mas voltem logo. Não vou ficar olhando pra cara desses recrutas a noite toda.”
Eles voltaram quinze minutos depois, uniformes secos, ainda com cara de quem tinha nadado até ali. Dispensei os novatos para o alojamento e fiquei com Mendonça e Vieira. Pelo menos eles sabiam jogar cartas decentemente.
Três rodadas depois, o tédio voltou com força total. Mendonça começou a contar uma história sobre uma mina que ele e Vieira tinham conhecido no Shopping Rio Sul no fim de semana anterior. No começo, não dei muita bola. Mais uma história de soldado querendo se gabar. Mas conforme ele ia falando, percebi que aquela porra era diferente. Vieira confirmava os detalhes, acrescentando coisas que só quem esteve lá saberia.
E foi assim que, naquele domingo de chuva, ouvi a história mais tétrica da semana, quiçá do mês. Vou contar pra vocês exatamente como eles me contaram. Sem tirar nem pôr. Se é verdade? Foda-se. Algumas histórias são boas demais pra se preocupar com isso.
***
“Cara, a gente tava de folga, sabe como é,” Mendonça começou, embaralhando as cartas. “Vieira queria ver aquele filme de ação, o Missão Impossível, já que militar tinha direito a pagar meia-entrada.”
“Missão Impossível: O Acerto Final” Vieira corrigiu, como se isso importasse pra caralho.
“Que seja,” Mendonça continuou. “A gente foi pro Rio Sul, aquela porra de shopping cheio de playboy na Zona Sul. Tava um dia de lotação, tá ligado?”
Assenti, acendendo outro cigarro. Já estava interessado.
“A gente tava sentado na praça de alimentação, esperando o horário do filme, quando ela apareceu.”
“Quem?” perguntei, soltando a fumaça.
“Vanessa,” Vieira respondeu, os olhos brilhando como se estivesse revivendo a cena. “Uma morena que parecia ter saído direto de uma revista da Playboy, sargento. Cintura fina, bunda grande, pernas de fazer um padre pecar. Usando um vestidinho florido tão curto que era praticamente uma camiseta.”
“Toda vez que ela passava por um grupo de pessoas a saia dela levantava” Mendonça riu. “Cada esbarrão era um show à parte.”
“Ela sentou perto da gente,” Vieira continuou. “Sozinha. O marido tinha ido comprar os ingressos – e a fila tava enorme. Mas a gente não sabia disso ainda.”
“Ela percebeu que a gente tava secando ela,” Mendonça disse. “Aí, em vez de ficar puta, ela se levantou, passou do lado da nossa mesa rebolando, foi comprar um sorvete. Na volta, olhou direto pra gente e sorriu.”
“Eu não resisti,” Vieira admitiu. “Puxei assunto. Falei que a gente era dois alunos da graduação de Direito da PUC, e que ela era uma mulher muito gata. Mentira, claro. A gente é do Exército, mas ninguém pega mulher falando que é soldado.”
Dei uma risada seca. O moleque não estava errado.
“Ela sentou na mesa e conversamos bastante sobre um monte de coisas aleatórias, Sargento. Foi aí que ela disse que tava esperando o marido, que iam ver o mesmo filme que a gente. Achei que era o fim da conversa, sabe? Mulher casada, fim de papo. Mas aí ela perguntou por que a gente não ia ver o filme com eles, que o marido era ‘tranquilo’.”
“Tranquilo uma ova,” Mendonça interrompeu. “O cara era um Frank Castle da vida. Sabe o Justiceiro? Aquele cara grande, cara de poucos amigos. Quando ele chegou, quase caguei nas calças. Pensei: ‘Fudeu, o cara vai nos arrebentar por estar dando em cima da mulher dele’.”
“Mas ela nos apresentou como se fôssemos velhos amigos,” Vieira disse. “E o cara, o André, só apertou nossas mãos, numa boa. Bizarro.”
“Aí fomos pro cinema,” Mendonça continuou. “Ela fez questão que a gente sentasse do lado dela, lá em cima, no canto. O marido do outro lado.”
Dei uma tragada longa, já imaginando onde aquela história ia parar.
“Mal sentamos, ela pediu pro marido ir comprar pipoca,” Vieira disse, baixando a voz como se alguém pudesse ouvir além da chuva lá fora. “Quando ele saiu, ela se virou pra gente e falou na lata: ‘Somos liberais, frequentamos casas de swing. Gostei de vocês. Podemos brincar um pouquinho aqui na sala’.”
“E colocou a mão na minha coxa,” Mendonça acrescentou. “Subiu até quase chegar no pacote. Quase gozei ali mesmo, sem nem ser tocado.”
“O marido voltou, viu a cena, e simplesmente sentou do meu lado, sem falar nada,” Vieira disse, ainda parecendo incrédulo. “Como se fosse a coisa mais normal do mundo.”
“O filme começou,” Mendonça continuou. “Sala escura. Som altíssimo. Ninguém prestando atenção em nós. E ela, sargento, ela começou a passar a mão na gente. Nos dois ao mesmo tempo.”
“Ela me beijou primeiro,” Vieira disse, como se isso fosse um troféu. “Um beijo de língua, daqueles que você sente até o dedão do pé. E enquanto me beijava, colocou a mão dentro da minha calça.”
“Depois foi minha vez,” Mendonça não quis ficar para trás. “Ela abriu meu zíper, colocou o saco de pipoca no meu colo pra disfarçar, e começou a me masturbar ali mesmo, no cinema cheio.”
Balancei a cabeça, entre a incredulidade e a inveja. “E o marido?”
“Assistindo ao filme como se nada estivesse acontecendo,” Vieira respondeu. “De vez em quando olhava, mas parecia mais… excitado do que com ciúmes, entende?”
“Ela sussurrou no meu ouvido que queria dar pra gente,” Mendonça continuou. “Perguntou onde poderíamos ir. O banheiro era arriscado demais, cheio e próximo do ponto dos seguranças.”
“Foi quando o marido sugeriu irmos todos para o Motel Leblon, depois do filme,” Vieira disse. “Aquele na Avenida Niemeyer, sabe? Chique pra caralho.”
“E vocês foram,” concluí, apagando o cigarro no cinzeiro improvisado de latão.
“Claro que fomos,” Mendonça riu. “Você não iria?”
Não respondi. Talvez fosse, talvez não. Depende do dia e se eu estivesse armado, é claro.
“Saímos do cinema, entramos no carro deles, um BMW preto com insulfilm escuro,” Vieira continuou. “Ela sentou atrás com a gente, o marido se preparando para dirigir.”
“Nem esperamos chegar no motel,” Mendonça disse, a voz baixando um tom. “No caminho, ela já abaixou e começou a me chupar. Deixou a bunda empinada pro Vieira.”
“Eu passei o dedo na… você sabe,” Vieira parecia subitamente tímido, como se só agora percebesse que estava contando isso para um superior. “Ela estava molhada. Muito.”
“Tão molhada que o marido parou o carro num canto mais escuro do estacionamento do shopping,” Mendonça retomou. “Deixou o ar-condicionado ligado e ficou só observando.”
“Ela tirou a calcinha e sentou no colo do Mendonça,” Vieira disse. “Mas ele não aguentou nem três minutos.”
“Vai se foder,” Mendonça empurrou o ombro de Vieira. “A situação era demais, porra. E você não durou muito mais.”
“É verdade,” Vieira admitiu, rindo. “Depois que ele gozou, ela veio pra mim. Me chupou um pouco e depois pediu pra eu meter. ‘Me arromba todinha’, ela dizia. Mas também gozei rápido. A gente tava muito nervoso.”
“E depois?” perguntei, já acendendo outro cigarro.
“Depois ela ficou puta porque não tinha gozado ainda,” Mendonça respondeu. “Pulou pro banco da frente e mandou o marido ir pro motel. A gente agradeceu, pegamos nossos contatos e fomos embora.”
“Fim da história?” perguntei, sentindo que faltava algo.
Mendonça e Vieira trocaram um olhar estranho. Como se estivessem decidindo se contavam o resto ou não.
“Não exatamente,” Vieira finalmente disse. “Dois dias depois, ela mandou mensagem. Queria encontrar de novo, mas só comigo dessa vez.”
“E eu recebi a mesma mensagem,” Mendonça acrescentou. “Só que ela não mencionou o Vieira. Como se quisesse encontrar só comigo.”
“A gente comparou as mensagens,” Vieira continuou. “Idênticas. Até os erros de digitação.”
“Achamos estranho, mas marcamos mesmo assim,” Mendonça disse. “No mesmo motel. Cada um pensando que ia sozinho.”
“Quando cheguei lá,” Vieira disse, “vi o Mendonça entrando em outro quarto. Liguei pra ele na hora.”
“A gente percebeu que tinha algo errado,” Mendonça completou. “Decidimos ir embora. Mas antes de sair, vi o marido dela, o tal André, entrando no motel com outro cara.”
Levantei uma sobrancelha. A história estava ficando cada vez mais estranha.
“Alguns dias depois, vimos no jornal,” Vieira disse, a voz agora séria. “Um casal foi preso por extorsão e chantagem. Eles atraíam homens para situações comprometedoras, filmavam tudo escondido, e depois ameaçavam divulgar se não pagassem.”
“Era ela?” perguntei, embora já soubesse a resposta.
“Era,” Mendonça confirmou. “Vanessa e André. Só que o nome verdadeiro dela era Cristina, e ele nem era marido dela de verdade. Eram parceiros de crime.”
“E vocês escaparam por pouco,” concluí.
“Não exatamente,” Vieira disse, olhando para o chão. “A gente não escapou.”
Franzi a testa, confuso.
“Eles tinham filmado tudo no cinema e no carro,” Mendonça explicou. “Mandaram os vídeos pra gente dois dias depois de a gente não aparecer no motel. Exigindo dinheiro.”
“E vocês pagaram?” perguntei.
“Não tínhamos escolha,” Vieira respondeu. “Somos militares. Se esse vídeo vaza, nossa carreira acaba.”
“Quanto?”
“Cinco mil cada um,” Mendonça disse, amargo. “Todas as nossas economias.”
“Mas aí veio a parte mais bizarra,” Vieira continuou. “Depois que pagamos, recebemos outro vídeo. Não era de nós. Era do tal André com outros caras. Muitos outros caras. Em situações… você sabe.”
“O cara era garoto de programa,” Mendonça explicou. “A mulher atraía as vítimas, ele filmava, e depois usavam o material para extorquir. Mas ele também trabalhava por conta própria.”
“E por que ele mandaria esses vídeos pra vocês?” perguntei, genuinamente intrigado.
“Junto com os vídeos veio uma mensagem,” Vieira disse. “‘Gostei de vocês. Devolvi o dinheiro na conta de vocês. Mas se abrirem a boca, esses outros vídeos vão parar na internet também. E vocês estão neles’.”
“Como assim, vocês estão neles?” perguntei. “Vocês transaram com o cara também?”
“Não!” Mendonça quase gritou. “Pelo menos, não que a gente se lembre.”
“O que ele quis dizer é que editou os vídeos,” Vieira explicou. “Usou tecnologia de deepfake para colocar nossos rostos nos corpos de outros caras que estavam com ele. Parece real pra caralho. Ninguém acreditaria que é falso.”
“Então vocês estão fodidos de qualquer jeito,” concluí.
“Exatamente,” Mendonça suspirou. “Se a gente denuncia, os vídeos falsos vazam. Se a gente não denuncia, eles continuam por aí, fazendo a mesma coisa com outros.”
“E o dinheiro?” perguntei.
“Voltou mesmo,” Vieira confirmou. “Como se fosse um pedido de desculpas bizarro.”
“Ou como se ele realmente tivesse gostado da gente,” Mendonça acrescentou, com um arrepio visível.
Ficamos em silêncio por um momento, apenas o som da chuva batendo no telhado de zinco da guarita.
“E o que vocês vão fazer?” perguntei finalmente.
“Nada,” Vieira respondeu. “O que podemos fazer? Eles foram presos por outros casos, mas não pelo nosso. E se a gente se meter, aqueles vídeos falsos…”
“A gente só reza pra eles ficarem presos por muito tempo,” Mendonça completou. “E nunca mais vamos ao Shopping Rio Sul. Nunca mais.”
***
Terminei de ouvir a história deles e fiquei olhando a chuva pela janela embaçada. Acendi mais um cigarro, o último do maço. Lá fora, o mundo continuava desabando em água.
“Sabe o que é mais fodido?” Vieira disse, depois de um longo silêncio. “Às vezes eu me pergunto se ela realmente gostou da gente. Se aquele momento no carro foi real ou só atuação.”
“Foi real,” Mendonça respondeu, com uma certeza que não combinava com o resto da história. “Ninguém finge aquilo.”
“Como você sabe?” perguntei, soltando a fumaça lentamente.
“Porque…” Mendonça hesitou, olhando para Vieira como se pedisse permissão. “Porque a ainda recebo mensagens dela. De um número diferente.”
“O quê?” Vieira parecia genuinamente surpreso. “Você nunca me contou isso!”
“Porque ela pediu pra não contar,” Mendonça admitiu. “Ela disse que gostou de mim de verdade. Que o esquema era do André, que ela só participava porque ele a ameaçava.”
“E você acreditou?” perguntei, incrédulo.
“Não sei,” Mendonça deu de ombros. “Mas ela mandou fotos. Dela sozinha. No apartamento dela em Ipanema. Disse que quando o André for condenado, quer me ver de novo.”
“Você é um idiota,” Vieira disse, balançando a cabeça. “Ela tá te manipulando de novo. Talvez queira o dinheiro que o parceiro devolveu”
“Talvez,” Mendonça respondeu. “Ou talvez ela realmente tenha sentido algo. Como o Keyser Söze, sabe? Aquele personagem de ‘Os Suspeitos’. O maior truque do diabo foi convencer o mundo de que ele não existia. Talvez o maior truque dela seja nos fazer acreditar que ela não sentiu nada.”
Vieira olhou para mim, como se pedisse ajuda para fazer o amigo entender. Mas quem era eu para julgar? Todos nós acreditamos nas mentiras que queremos acreditar.
“Tem mais uma coisa,” Mendonça disse, a voz quase um sussurro. “Algo que não contei nem pro Vieira.”
“O quê?” perguntei, apagando o cigarro.
“Ela trabalha numa loja de lingerie em Ipanema. Não em Nova Friburgo, como disse. E eu a vi lá, semana passada. Estava com uma menina. Uma cliente. Fazendo exatamente o mesmo jogo. O mesmo olhar, o mesmo sorriso.”
“E você não fez nada?” Vieira perguntou, incrédulo.
“O que eu poderia fazer?” Mendonça respondeu, com um sorriso triste. “Ela me viu também. Nossos olhos se encontraram. E sabe o que ela fez? Piscou pra mim. Como se fôssemos cúmplices.”
“Você é tão vítima quanto aquela cliente,” eu disse.
“Não,” Mendonça balançou a cabeça. “Aí é que está. Eu não me sinto como vítima. Me sinto como… como alguém que viu algo raro. Algo perigoso e belo ao mesmo tempo. Como quem vê um raio cair de perto e sobrevive para contar.”
A chuva continuava caindo lá fora. Pesada, implacável. Como a verdade que às vezes preferimos não enxergar.
“Sabe o que é mais fodido?” Mendonça continuou, olhando pela janela. “Eu voltaria a vê-la. Mesmo sabendo de tudo isso. Mesmo sabendo que é uma armadilha.”
“Por quê?” perguntei, genuinamente curioso.
“Porque naqueles minutos no carro dela, eu me senti mais vivo do que em toda a minha vida,” ele respondeu, com uma honestidade que doía. “E às vezes, sargento, vale a pena se queimar só pra sentir o calor do fogo.”
Ficamos em silêncio depois disso. O que mais havia para dizer? Lá fora, a chuva começou a diminuir. Logo o sol voltaria a aparecer, secando as poças, como se nada tivesse acontecido.
Como se algumas histórias pudessem ser lavadas tão facilmente quanto o asfalto.