Mais uma vez, aquele pesadelo dos infernos. Sonhei de novo com o Leatherface, a porra do açougueiro da serra elétrica. Aquele som, o cheiro de carne podre, a máscara de pele humana. Será um sinal? Um aviso? Ou só a minha cabeça, essa máquina fodida, me pregando peças? Eu, Robert, subtenente do exército, acostumado com a merda da guerra, com o cheiro de pólvora e sangue, e ainda assim, um filme trash me tira o sono. Que piada. Talvez seja um sinal pra não ver mais filmes de terror. Ou talvez seja um sinal pra me preparar pra algo pior. A vida é assim, cheia de sinais que a gente só entende depois que a porra toda já aconteceu. Dexter Morgan, ele entenderia essa obsessão, essa necessidade de decifrar padrões, mesmo onde não existem. Mas ele faria um dossiê, uma análise profunda. Eu? Eu só sinto o frio na espinha e sigo em frente. Porque não tem pra onde correr.
A viagem. Daqui a alguns dias. Tailândia. Florestas. Rios. Aventura, eles disseram. Pra mim, só mais um lugar pra suar e tentar não morrer. Tenho que separar as coisas. A mochila, as botas, a faca. O básico pra sobreviver nesse mundo de merda. E os sargentos. Miller, o grandalhão, sempre com uma piada pronta. Johnson, o caladão, com olhos que já viram demais. E a Sargento Lorraine, a novata, ainda com o brilho da inocência nos olhos, que logo vai se apagar.
A viagem do Brasil pra Tailândia foi uma merda. Vinte e poucas horas enfiado num tubo de metal, com cheiro de peido e comida de avião. E as turbulências? Em cima do oceano, parecia que o avião ia desmontar. Cada chacoalhão, um frio na barriga. A gente pensa: é agora que a porra toda vai pro espaço. Mas não vai. Nunca vai. A gente chega. Cansado, fedendo, mas chega. O aeroporto de Bangkok era um inferno de gente, calor e cheiros estranhos. O translado, uma van velha, com ar condicionado que não funcionava, nos jogou no meio do caos da cidade. E o aluguel do jipe.
Sim, ao chegar no início da selva alugamos um jipe. Velho, barulhento, mas que aguenta o tranco. O tipo de carro que te leva pra onde você não deveria ir. O atendente, um sujeito magro, com um sorriso amarelo e olhos que pareciam ter visto demais, o tipo de cara que te aluga um carro e te deseja boa sorte, sabendo que você vai precisar. Ele parecia um personagem saído de um filme do Tarantino, meio bizarro, meio ameaçador.
Junto com o carro, deixando alguns dólares a mais, conseguimos pegar ferramentas. Machados, facões, cordas. O arsenal básico pra uma aventura na selva. E aí, a porra da motosserra. Tinha uma disponível, grande, pesada, com dentes afiados no cantinho perto do balcão. E eu, que nunca usei uma na vida, cismei de levar. Lembrei dos sonhos. Do Leatherface. Vai que eu precise, pensei. Uma voz na minha cabeça, sussurrando. Uma voz que parecia a minha, mas que tinha um tom mais sombrio, mais… predatório. O tipo de voz que te convence a fazer a coisa errada, mas que no fundo, você sabe que é a coisa certa. A gente sempre tem um lado sombrio, não é? Um lado que a gente tenta esconder, mas que de vez em quando, dá as caras. E no meio da selva, longe da civilização, esse lado tende a se soltar. Que se foda. A gente tá aqui pra isso. Pra se perder. E talvez, pra se encontrar. Ou não. Quem sabe?
A viagem de jipe foi mais tranquila. Largamos o jipe no pé da montanha. A máquina, ofegante e coberta de barro, parecia grata pelo descanso. Na nossa frente, o próximo passo: um teleférico. Uma caixa de metal enferrujada, pendurada por um cabo que parecia fino demais pra aguentar nosso peso, rangendo com o vento. A subida foi um teste de paciência. Lenta, barulhenta. Lá embaixo, a selva se estendia como um tapete verde infinito, uma beleza de foder que não te convidava pra porra nenhuma, só te lembrava do tamanho da tua insignificância. Miller, o grandalhão, soltava uma piada idiota sobre a última manutenção daquela geringonça. Johnson, o caladão, encarava o abismo sem piscar. Lorraine, a novata, agarrava a barra de segurança com a força de quem vê a morte de perto. Eu? Eu só sentia o balanço daquele caixão suspenso e pensava na queda. O plano era esse. Pegar essa carona pro topo, achar uma trilha e descer pela selva de volta ao veículo. Uma fuga? Talvez. Mas a gente nunca escapa de verdade, não é? A gente só escolhe uma gaiola diferente pra se sentir livre por um instante.
Depois da subida, a trilha. Descer a encosta. A floresta da Tailândia. Úmida, densa, cheia de barulhos estranhos. O tipo de lugar que te engole, que te faz esquecer quem você é. Cada passo, uma luta. O suor escorrendo, a respiração ofegante. Os mosquitos, a umidade, o cheiro de terra molhada. Era como estar dentro de um pulmão gigante, respirando a vida e a morte ao mesmo tempo. E eu, Robert, sentia cada fibra do meu corpo reclamar, mas a mente… a mente estava ligada. Observando. Analisando. Como John Rambo faria, mapeando cada detalhe, cada sombra, cada som. Não para encontrar um novo alvo, mas para sobreviver. Para não ser o alvo. Porque na selva, meu caro, você é caça ou caçador. E eu não nasci pra ser caça.
Quando começamos a andar pela trilha, o inferno começou. A floresta se fechou sobre nós, uma parede verde e úmida que engolia a luz do sol. O ar ficou pesado, denso, com cheiro de terra molhada e algo mais… algo que não pertencia à natureza. Sons estranhos vinham de todos os lados, sussurros, estalos, risadas abafadas. O tipo de som que te faz arrepiar os pelos da nuca, mesmo sabendo que não há nada ali. Ou há? Os olhos da selva nos observavam, eu sentia. Não eram animais. Era algo mais antigo, mais primitivo. O tipo de coisa que te faz questionar a sanidade. O tipo de coisa que te faz querer correr, mas não há para onde ir. A trilha, antes um caminho, agora parecia um corredor sem fim, nos levando para o coração de algo que não entendíamos. E o silêncio, quando vinha, era ainda mais aterrorizante que o barulho. Um silêncio que gritava, que te avisava que você não estava sozinho. E que o que estava ali, não era amigável.
O inferno, meu caro, não é um lugar com fogo e demônios. É um lugar onde a civilidade se esvai, onde a lei da selva impera. E a gente, que se achava tão civilizado, tão acima de tudo, descobriu isso da pior forma. No meio daquela trilha, fomos emboscados. Não por animais, mas por algo muito pior: a selvageria humana.
E ela se apresentou na forma de quatro homens. Brotam do mato, como se fossem parte da porra da paisagem, cercando a gente. Os rifles, velhos e malcuidados, estavam firmes, apontados para as nossas caras. Eles eram parecidos, o tipo de semelhança que vem do mesmo sangue ou da mesma miséria. Rostos que pareciam esculpidos na mesma madeira podre, com barbas ralas e olhos pequenos, desconfiados. Aquele tipo de bandido caipira que o cinema romantiza, mas que na vida real só fede a mofo e desespero. As roupas, uma mistura de peças gastas, e as botas, rachadas e sujas de uma lama que parecia ter anos.
Não falaram muito. Não precisava. O líder, um pouco mais velho, só fez um gesto com o cano da arma. Queriam tudo. As mochilas foram arrancadas das nossas costas, jogadas no chão com desprezo. Relógios, carteiras, qualquer coisa de valor. A decepção não era pelas coisas, foda-se as coisas. Era pela humilhação. Pela impotência. Ver a cara de Miller, o gigante, sendo obrigado a se ajoelhar por um sujeito que não batia no seu ombro. Ver a gente, soldados, treinados para o combate, rendidos por quatro bostas com armas enferrujadas.
Com o nosso equipamento em mãos, eles relaxaram. A arrogância de quem já venceu. Sentaram a alguns metros de distância, numa clareira, e um deles começou a preparar um café numa lata velha. Parecia uma piada. Deixaram o mais novo do grupo deles nos vigiando, enquanto nos obrigavam a sentar dentro de um buraco na terra, uma vala natural na trilha. O vigia, um moleque que não devia ter nem vinte anos, nos olhava com um misto de tédio e poder.
Foi o descuido dele que mudou tudo. Ele se virou por um segundo, talvez para cuspir, talvez para olhar os companheiros. E foi quando a nossa mais nova, Lorraine, enlouqueceu. A inocência dela, aquela que eu achei que ia se apagar aos poucos, se estilhaçou de uma vez só. Ela explodiu. Saltou do buraco como um animal, direto para cima do vigia. Não foi uma luta bonita, não foi técnica. Foi um amontoado de braços e pernas, grunhidos e desespero, rolando na terra. Os outros, lá longe, rindo perto do fogo, demoraram a perceber. A gente só assistia, paralisado – a arma estava a ponto de atirar a qualquer momento. A luta era pela arma. Um puxa-e-empurra frenético. E então, o som. O som do tiro foi seco, íntimo, quase abafado pela confusão. O corpo do vigia ficou rígido. Quando Lorraine rolou para o lado, ofegante e com a arma na mão, o rosto do bandido era uma máscara de sangue e surpresa.
O grito de um dos outros bandidos quebrou o feitiço. Correr. O cérebro desliga e o corpo assume. Corremos pela trilha, sem olhar para trás. A trilha, antes um corredor para o inferno, agora era nossa única rota de fuga. Ela era bem marcada, gasta pelos pés de incontáveis viajantes, e a gente seguia o caminho como se a vida dependesse disso. Porque dependia. Gritos atrás de nós. E tiros. Estalando por entre as árvores, cortando o ar perto demais. Miller, com suas pernas longas, ia na frente. Em um trecho de lama, Johnson escorregou e foi ao chão, e a arma que tínhamos pego do bandido, sumiu para sempre em um pântano de lama – Lorraine teve que escolher entre estar com a arma ou ajudar Johnson a se erguer. Um baque surdo. Podíamos ouvir os passos pesados e os xingamentos dos nossos perseguidores se aproximando. Erguê-lo foi um esforço desesperado, puxando pelos braços, gritando. O medo te dá uma força que você não sabia que tinha.
Finalmente, a clareira. E o nosso jipe. A visão daquela lata velha foi como um milagre. Mais abaixo na estrada de terra, vimos outro carro, uma picape caindo aos pedaços que, sem dúvida, pertencia a eles. Minha mente gritou pra gente correr até lá, sabotar, qualquer coisa. Mas não deu tempo. Um grito veio de onde a trilha terminava. Eles nos viram. Mais tiros, agora sem as árvores para abafá-los. O som de uma bala batendo na lataria do jipe foi o único incentivo que precisamos. “Entra, entra, porra!” Pulei para o volante, a chave já na minha mão, o motor do jipe rugiu como um animal ferido.
Pisei fundo. O jipe cantou pneu na terra e se lançou pela estrada estreita. Olhei pelo retrovisor e a picape deles já estava vindo, levantando uma nuvem de poeira e ódio. A perseguição era uma dança de predadores de metal. Eles se aproximavam rápido, o carro deles era mais leve. O desespero tomou conta do carro. Lorraine gritava a cada solavanco, Miller xingava tudo e todos, Johnson estava mudo, segurando firme no painel, com os nós dos dedos brancos. A primeira batida foi na nossa traseira. Um tranco violento que me fez quase perder o controle. Outra. O som do metal se chocando. E então, o vidro traseiro se estilhaçou, um tiro tinha acertado. A gritaria deles era meu combustível. Eu precisava de uma chance. Numa curva mais fechada, com um barranco do lado direito, eu vi a oportunidade. Freio. Deixei eles emparelharem. O rosto do motorista, o líder deles, era puro ódio. No momento em que ele tentou me fechar, virei o volante com tudo para a esquerda, batendo a lateral do jipe na porta dele. O som do metal se contorcendo, se rasgando, foi música. A picape perdeu a trajetória, as rodas da direita saíram da estrada. Um instante de silêncio suspenso no ar, e depois o baque surdo lá embaixo, seguido pelo som de árvores se quebrando.
A gente não parou pra ver. Continuei acelerando, o coração martelando contra as costelas, o suor frio escorrendo pela minha testa. E então, no fim da estrada de terra, cortando a paisagem, a gente avistou. A ponte.
Uma ponte de madeira e corda. Imensa. Podre. Balançando sobre um rio que parecia um abismo. O tipo de lugar que te faz questionar todas as suas escolhas de vida. O centro da ponte parecia tão alto quanto um prédio de 20 andares. Mas era a única saída. Passamos por ela, o jipe rangendo, a madeira gemendo sob o peso. E no fim, a ideia. A motosserra. Aquela porra de motosserra que eu cismei de trazer. O Leatherface sorriu na minha cabeça. Era pra isso. Era pra esse momento. Pegamos as ferramentas: Johnson com o machado, Lorraine e Miller com os facões e eu com a motosserra. Começamos a derrubar a ponte. A madeira velha, podre, cedia com um som seco. O cheiro de serragem, de morte. E nesse momento, o carro deles chegou no início da ponte. Aceleramos. A tensão. O suor escorria, os músculos ardiam. O som da motosserra, um rugido infernal, cortando a madeira, cortando a esperança deles. Ouvimos um tiro. Dessa vez a “bala” atingiu em cheio o braço do Miller, que desabou ao chão gritando de dor. Não deu para parar o que estávamos fazendo para ajudá-lo, nossas vidas dependiam de nossa presteza. Miller gritou:
– Continuem, vou esperar no carro! Bom soldado, pensei.
Quando o carro chegou na metade da ponte, finalmente cortamos a base. A ponte gemeu, estalou, e desabou. O carro despencou no penhasco. Um grito. Abafado. E então, o silêncio. O silêncio da vitória. Ou da morte. Depende do ponto de vista. A fumaça preta e o cheiro de combustível vindo de uma grande nuvem de destroços, sangue e madeira. A gente não parou pra ver. Não tinha tempo. A gente só corre. Sempre. Porque a vida é isso. Uma corrida sem fim. E a gente, os corredores. Ou os caçadores. Ou os presas. Quem sabe?
O caminho de volta para o aeroporto foi uma névoa. A adrenalina ainda corria nas veias, mas o cansaço era um peso nos ombros. O jipe, agora com marcas de batalha, parecia um velho amigo que tinha visto demais. Ninguém falou muito. Não havia o que falar. A gente tinha feito o que tinha que ser feito. Sobrevivemos. Por enquanto.
Paramos em um vilarejo para localizar um médico, para fazer um curativo no braço de Miller. Nesse momento paramos em um barzinho onde finalmente pudemos relaxar, pedir um whisky tailandês com gosto de gasolina batizada e enfim baixar nossa adrenalina. Não tocamos no assunto em nenhum momento.
Chegamos ao aeroporto. Aquele cheiro de ar condicionado, de gente apressada, de normalidade. Quase me fez vomitar. A gente se mistura na multidão, como fantasmas que acabaram de voltar do inferno. Os olhares. Ninguém sabe o que a gente passou. Ninguém se importa. E é melhor assim.
O voo. O avião decolando, deixando a Tailândia para trás. A selva, os agressores, o morto sem rosto, a ponte desabada. Tudo virando um ponto minúsculo lá embaixo. A gente olha pela janela, e o mundo parece tão distante, tão irreal. É como se a gente tivesse sonhado tudo. Mas as cicatrizes, elas não mentem. Elas estão lá, gravadas na carne, na alma. Miller, Johnson, Lorraine. Cada um com seus próprios demônios, suas próprias histórias. A gente não fala sobre isso. Não precisa. A gente sabe. E é o suficiente.
No fim, a gente sempre volta. Para a rotina, para a vida normal. Mas a gente nunca é o mesmo. Algo muda. Algo se quebra. E algo se fortalece. A gente aprende que a vida é uma selva, não importa onde você esteja. E que, às vezes, você precisa de uma motosserra. Ou de um pé. Ou de um sargento que não tem medo de sujar as mãos. E eu, Robert, aprendi que o Leatherface, talvez, não fosse só um pesadelo. Talvez fosse um professor. E a lição? A lição é que a gente nunca para de correr. Porque sempre tem algo atrás da gente. E a gente? A gente só continua. Até a próxima vez. Ou até o fim. Quem sabe?