Era madrugada. O Jardim Botânico, um oásis de luxo e hipocrisia, dormia sob um manto de estrelas indiferentes. Mas não a mansão. Não naquela noite. O Mini Cooper azul metálico, estacionado na garagem, parecia um brinquedo esquecido. Ela, uma deusa loira, branca, com olhos azuis profundos que te engoliam, tinha chegado do Shopping Leblon. Carregava no braço algumas bolsas de grife, o tipo de mulher que exala dinheiro e desejo. O nome dela? Aurora. Aurora D’Angelo. Um nome que combinava com a pele clara, os cabelos que pareciam fios de ouro sob a luz da lua, e aqueles olhos. Ah, aqueles olhos, o azul que te faz esquecer o próprio nome. Ela tentou pegar todas as bolsas, mas esqueceu o celular no carro. Voltou. Pegou o aparelho. E quando chegou à porta de casa, ouviu um som. Uma melodia familiar. “Come Undone”, do Duran Duran. Ela não tinha empregados àquela hora, mas sabia. Ele estava em casa.
Ela abriu a fechadura digital. Um clique seco. Entrou. O cheiro de vinho tinto, de perfume caro, de algo mais. Algo podre. O cheiro que te avisa que a morte está por perto. Subiu as escadas. Degrau por degrau, deixando um rastro de roupas pelo caminho. Uma peça em cada degrau. A blusa de seda, a saia justa, a calcinha de renda, transformando a subida num strip-tease lento e deliberado, uma trilha de sedução que levava ao segundo andar. E quando chegou à banheira da suíte, estava nua. Completamente. Como se estivesse se despindo para um amante. Ou para a morte. Isso denota uma intimidade. Uma confiança. Ou uma ingenuidade fatal. Ela agia assim com todos os seus amigos? Ou ele era especial? Horatio Caine faria uma análise psicológica profunda. Eu? Eu só sentia o cheiro de sangue no ar. E o cheiro de mistério. O tipo de mistério que te faz querer desvendar. Ou vomitar. Quem sabe?
O assassino não perdeu tempo. Aumentou o volume de “Never Tear Us Apart”, do INXS, até o máximo. O som preencheu a casa, abafando qualquer grito, qualquer súplica. O som que te embala para a morte. E então, subiu. Entrou no banheiro, com roupas e sapatos. O desrespeito que só um íntimo comete. E a assustou. Ela, nua, vulnerável, na banheira. A água, antes um convite ao prazer, agora um espelho da morte. Ele entrou na banheira com os sapatos nos pés e a estrangulou com força, raiva e ódio, tão forte que as marcas de seus dedos ficaram fixas como uma tatuagem no pescoço de Aurora. Ali, na água, o som borbulhante, abafado, da vida se esvaindo. O corpo dela se contorcendo, os olhos azuis, antes cheios de desejo, agora vazios, fixos no teto, uma cena que te faz questionar a humanidade. Ou a falta dela.
As evidências, meu caro, elas falam. E elas gritavam. Ele a conhecia. Não houve relação sexual naquele momento. Mas a intimidade era palpável. As roupas dela, espalhadas pela escada, um convite que se tornou uma armadilha. As pegadas de sapatos molhados pela casa. Os vizinhos, esses abutres, narraram a chegada dela, o volume da música. Mas ninguém viu nada. Ninguém se importou. A vida é assim. A gente vê, mas não enxerga. A gente ouve, mas não escuta. E a gente é quem tem que juntar os cacos.
Mas por que cargas d’água eu, Robert, estou aqui a essa hora da noite, entrevistando herdeiros ricos, bêbados e drogados, que nem sabem o que estão fazendo neste mundo?
Vou lhes contar rapidamente. Era o início do ano de 2025. Estava em uma operação na favela do Cantagalo, perseguindo um soldado raso do movimento, puto porque meu alvo era o Brazuca, chefão supremo do tráfico, que tínhamos perdido de vista durante a operação, mas que tínhamos certeza que estaria entocado em algum dos barracos ali. Seria uma chance em um milhão de pegá-lo, mas o cara era mais escorregadio que quiabo.
Mas o baixinho, “vapor” do morro conhecido como Pinga, já servia. Ele descarregou o velho revólver calibre 38 que portava contra nós, mas como as seis munições acabaram e a sétima engasgou, ele largou a “garrucha” e correu, mas não foi muito longe.
Peguei-o em uma casa de dois andares. Ele, em seu um metro e quarenta e cinco, estava tentando se esconder ao lado da geladeira do morador, mas não foi esperto o suficiente para esconder os pés, que o entregaram. Levei-o para a laje puxando pela orelha e, para minha infelicidade, tentei imitar o ator Arnold Schwarzenegger no filme “Comando para Matar”: peguei o coitado do Pinga e o segurei pelo calcanhar, de cabeça para baixo, com um braço na quina mais alta da laje.
Como ele deveria ter no máximo 25 anos, eu tinha certeza de que ele não tinha visto o filme de 1985 com o gigante austríaco, então aproveitei para imitar o texto:
“É o seguinte, Pinga, esse é o meu braço mais fraco. Se não me falar em que barraco o Brazuca está escondido, eu vou ser obrigado a te soltar.”
Ele, na verdade, não sabia. E eu não estava com muita força no braço. Resultado: vacilei e o soltei. O bandidinho caiu de cabeça dois andares abaixo. Mesmo machucado, ele tentou correr uns 100 metros, mas desmaiou de dor.
Fraturou duas costelas e o pescoço.
Brazuca já deve estar em um resort bem escondido em algum estado do Nordeste, Pinga está internado em um hospital penal e eu, como punição, fui transferido para a divisão de crimes contra celebridades…
Das evidências encontradas na cena do crime, recolhi algumas pontas do cigarro alemão “Karo” que o assassino fumou enquanto esperava a vítima, o vape que pertencia a Aurora e alguns objetos que não combinavam com o local para verificar impressões digitais. Pegadas do assassino iam do banheiro ao exterior da casa, indicando que ele saiu da banheira e foi caminhando lentamente pela casa, deixando as marcas de seu sapato 43 de solado de couro molhado pelo caminho. Recolhi o MacBook Pro da Aurora e mandei para a perícia. Puta merda, esse notebook custava três meses do meu salário e estava completamente encharcado de vinho tinto. Mas eu sabia que nossa equipe de perícias conseguia resgatar dados até de celulares encontrados no fundo de rios.
Dito e feito.
Resgatamos a caixa de e-mails dela e a lista de contatos. Muitos políticos, atores, traficantes, alguns anônimos e centenas de lojas. Levaríamos anos e todo o dinheiro do contribuinte para investigar todos esses nomes. Mas, para nossa sorte, a garota tinha um grupo chamado “PacMans”… Provavelmente, nosso assassino estava naquela pasta. PacMan, o famoso come-come, um personagem dos jogos dos anos 80 com o mesmo nome. E, no caso, seriam os contatos ‘mais íntimos’, que provavelmente tinham um acesso privilegiado ao corpo da donzela. Sherlock Holmes faria uma análise minuciosa de cada um desses contatos, buscando padrões, obsessões. Eu? Eu só sentia o cheiro de podridão no ar. E seguia as pistas.
Primeiro nome: um empresário rico e corrupto da Lagoa.
Cheguei com meu parceiro à sua boate. Fui mal recebido, mas consegui entrar por ser da polícia.
Ele me recebeu em seu escritório com desdém, mas mesmo demonstrando ódio pela polícia e tendo o escritório cheio de evidências de vários crimes (uma arma escondida, vestígios de drogas, mulheres nitidamente menores de idade circulando na boate, etc.), ele não demonstrou medo ante minha abordagem.
Quando citamos o nome Aurora D’Angelo, sua arrogância e seu desdém sumiram. Meio abalado, afirmou que conhecia muito bem a mulher assassinada. Eles tinham uma relação próxima, eram amantes eventuais. Mas enfatizou que não teve nada a ver com o assassinato, muito pelo contrário. E, por gostar muito dela, tentou me subornar, oferecendo uma ótima quantia em dinheiro se eu lhe passasse o nome do assassino antes de prendê-lo.
O tipo de cara que se acha acima da lei. O tipo de cara que compra tudo e todos. Mas não a mim.
Antes de sair da boate, ele me passou o nome do sujeito que costumava levar drogas para ela, talvez para me ajudar na investigação, talvez por se tratar de algum desafeto seu – ou os dois. Por coincidência, ou não, este nome fornecido também estava na lista dos PacMans. A vida é cheia de coincidências, não é? Ou de armadilhas. Quem sabe?
O traficante foi mais fácil de achar.
Quesadilha.
Achei o apelido estranho até ver sua foto: ele tinha as feições de um mexicano, com um bigode ralo e olhos que pareciam ter visto muitos becos escuros. Ele estava na Lapa, encostado em um muro, com alguns produtos no bolso. Vendia para turistas chilenos, o tipo de gente que busca emoção barata em terras estrangeiras. Quando me viu, desconfiou que eu era da polícia. O cheiro. O cheiro do medo. E saiu correndo.
Ah, a Lapa. O coração pulsante do Rio. Ruas estreitas, cheias de gente, de música, de cheiros. O tipo de lugar que te engole. E a perseguição começou. Eu e meu parceiro, no encalço de Quesadilha. Corremos. Pelas ruas molhadas de cerveja, desviando de mesas de bar, de casais se beijando, de bêbados vomitando. O som dos nossos passos ofegantes se misturava ao samba que vinha dos bares, aos gritos dos vendedores ambulantes, ao barulho da cidade que nunca dorme. Ele era rápido, o desgraçado. Como um rato fugindo de um gato. Mas eu, Robert, sou um pitbull. E meu parceiro, um rottweiler. A gente não desiste fácil.
Passamos por becos escuros, por vielas apertadas, por escadarias que pareciam levar ao inferno. O suor escorria, a respiração falhava. Mas a adrenalina, essa puta, te mantém vivo. O som dos nossos corações batendo forte, o som dos nossos tênis raspando no asfalto. E o som dele, Quesadilha, ofegando, tropeçando, sentindo o cerco se fechar. Harry Callahan faria uma análise da rota de fuga, dos pontos de estrangulamento. Eu? Eu só seguia o instinto. O instinto de caça. O instinto de pegar o desgraçado. E pegamos. Na Glória. Um bairro que não tinha nada de glorioso naquele momento. Ele estava encurralado em um quintal fechado, sem saída. O cara se achava esperto, mas no fim, era só mais um peixe pequeno na rede.
Ao dizermos que não o prenderíamos em flagrante, mesmo cheio de drogas nos bolsos, sob a condição de nos contar tudo que sabia sobre ela, ele rapidamente abriu o bico. O envolvimento dela com um cara desses já mostrava que ela não tinha medo de se arriscar. Era uma mulher que vivia no limite, que buscava emoções fortes. Ele disse que esteve com ela no dia do assassinato, pela manhã, e levou a quantidade de cocaína que ela costumava consumir.
Segundo Quesadilha, naquela manhã ela estava alegre, mas também apreensiva. Mencionou um cara, um tal de “Maromba”, um brutamontes de academia que era obcecado por ela. Disse que ele tinha um temperamento explosivo e que ela estava tentando se afastar. Quesadilha nos deu o nome da academia onde o cara treinava, na Barra. Um lugar de gente que cultua o corpo e esquece da alma.
Fomos para a academia.
O cheiro de suor e ferro, o som de pesos batendo, de gritos de esforço. Um templo da vaidade. E lá estava ele. Maromba. Um armário de dois metros de altura, músculos saltando da regata. Ele nos olhou com desprezo, como se fôssemos insetos. Não quis cooperar. Tentou nos intimidar, estufando o peito, flexionando os bíceps. Uma cena patética. Meu parceiro já ia sacar a arma, mas eu fiz um sinal. Deixa comigo. Fui pra cima dele. Rápido. Preciso. Uma rasteira, um golpe no joelho, e o gigante desabou. O som do corpo dele batendo no chão emborrachado foi música para os meus ouvidos. Ele tentou reagir, mas eu já estava em cima dele, o joelho em seu pescoço, a arma apontada para sua cara. O cheiro de anabolizante, de raiva, de medo. Ele, que se achava o rei do pedaço, agora era só um animal assustado. E aí, ele falou. Admitiu que era obcecado por ela, que a seguia, que a ameaçava. Mas jurou que não a matou. Tinha um álibi. Estava com outra mulher na hora do crime. E pra se livrar da gente, ele entregou outro nome. Um playboyzinho, filho de político, chamado Jorginho. Disse que Jorginho era ainda mais louco que ele, que tinha um histórico de violência contra mulheres e que Aurora tinha medo dele. Nos deu o endereço. Uma cobertura na Vieira Souto. O tipo de lugar que a gente só vê em filmes.
Chegamos à cobertura. A porta, de madeira maciça, estava entreaberta. Entramos. O lugar era um chiqueiro de luxo. Garrafas de uísque vazias, cinzeiros transbordando, restos de comida. E no meio da sala, Jorginho. Desacordado no sofá, uma poça de vômito ao lado. Acordamos o desgraçado. Ele nos olhou com os olhos vermelhos, injetados de ódio e cocaína. Não gostou da nossa visita.
PQP… Já tinha entrado em uma briga hoje, mas essa agora seria inevitável.
Partiu pra cima de mim. E aí, a dança começou. Uma luta corporal feia, suja. Socos, chutes, cotoveladas. O som de vidro quebrando, de móveis se partindo, de carne batendo em carne. Ele era forte, o filho da puta. Mas eu, Robert, sou mais. Um soco no queixo, um chute nas costelas, e ele caiu. O nariz, quebrado, jorrava sangue no tapete persa. O gosto de sangue na minha boca. O cheiro de suor e de medo. Ele, o playboy intocável, agora era só um saco de pancada. E aí, ele confessou. Não o assassinato. Mas a perseguição. O assédio. A obsessão. E ele nos deu a peça que faltava. Disse que passara bastante tempo escondido em frente à casa dela, mas nunca teve coragem de entrar na propriedade. Contudo, por alguns dias, viu o carro de Ciro Falcão estacionado por lá. Ele cuspiu no chão. “Ciro Falcão. Deste ela gostava de verdade. Ou gostava do que ele representava. Ciro Falcão. Lembra? Rockstar dos anos 80. Aquele que cantava ‘Noites de neon e vodca barata’. Ela dizia que ele era poesia e decadência. Poesia e decadência… e muita, muita cocaína.”
Cada depoimento ia pintando um quadro mais complexo de Aurora, e a tensão crescia à medida que o cerco se fechava.
O apartamento de Ciro Falcão, em Copacabana, fedia a glória passada e a mofo. Pôsteres amarelados dele mesmo, mais jovem e magro, cobriam as paredes manchadas de umidade. Garrafas de uísque vazias serviam como decoração. O som era de um silêncio pesado, oleoso. Ele abriu a porta vestindo apenas um robe de seda puído, o peito nu e flácido. Os olhos, injetados, me analisaram com o tédio de quem já viu de tudo e não se impressiona com mais nada.
“Polícia?”, ele perguntou, a voz um cascalho, arrastada pelo álcool. “Se for pelo som alto, meus vizinhos já desistiram de reclamar há uns vinte anos.”
“Aurora D’Angelo”, eu disse, entrando sem ser convidado. Meu parceiro ficou na porta, uma montanha de músculos bloqueando a saída. “Você era um dos PacMans dela.”
Um espasmo de dor, ou talvez memória, cruzou seu rosto. Ele foi até um sofá que já viveu dias melhores, afundando nele como um navio naufragado. “Aurora… ah, Aurora. Ela era uma chama. O tipo de mulher que te queima só por chegar perto.” Ele pegou um copo sujo, serviu uma dose generosa de uísque. “Ela esteve aqui, sim. Duas noites antes… antes da merda toda. Brigamos. Ela riu de mim. Disse que eu era uma relíquia, uma peça de museu. Que meu tempo já tinha passado.”
“E por que ela diria isso?”
“Porque eu não queria dividi-la! Ela chegou aqui com o cheiro de outro homem. Um cheiro de poder, de dinheiro limpo. Não essa podridão aqui.” Ele gesticulou para o apartamento. “Ela disse que tinha fisgado um peixe grande. Um peixe que podia dar a ela o mundo. Um político.”
“E você fez o que, Ciro? Não aguentou ser trocado por um terno e gravata?”
A raiva estalou nos olhos dele. Foi rápido. Ele jogou o copo de uísque na minha direção e veio pra cima, um grito gutural saindo de sua garganta. Não era um lutador. Era um animal ferido, movido por orgulho e desespero. O cheiro de suor e álcool se intensificou. O som dos nossos corpos se chocando contra uma estante frágil, derrubando prêmios velhos e empoeirados. Ele tentou me acertar com um soco desajeitado. Eu desviei, o movimento instintivo, treinado. Girei e o prendi numa gravata, o braço apertando seu pescoço. O som da sua respiração se tornou um chiado, seus pés arranhando o chão em busca de apoio. Ele se debatia como um peixe no anzol. Senti o cheiro do seu medo. O cheiro da derrota.
“Chega”, eu rosnei no seu ouvido, apertando um pouco mais. “O nome, Ciro. O nome do político.”
Ele bateu no meu braço, se rendendo. “Barros… Deputado Barros…”
O gabinete do Deputado Barros na ALERJ era o oposto do apartamento de Ciro. Frio, impessoal, com a vista panorâmica da Baía de Guanabara parecendo um quadro caro e sem vida. O ar-condicionado zumbia baixo, um som constante e irritante. Barros era um homem de meia-idade, impecavelmente vestido, com um sorriso que não alcançava os olhos. Olhos de predador.
“Detetive Robert”, ele disse, sem se levantar. “Imagino que não tenha vindo discutir a pauta de votações.”
“Aurora D’Angelo”, eu disse, sentando na cadeira à sua frente. “Ela te chamava de peixe grande.”
O sorriso dele vacilou por um segundo. Um tique quase imperceptível. “Aurora era… exuberante. Tinha uma imaginação fértil.”
“Ela também era perigosa? Sabia de coisas que podiam sujar esse seu terno caro?”
“Todos nós temos segredos, detetive. A questão é o quão bem os guardamos.” A voz dele era calma, controlada. O tipo de voz que dá ordens e espera obediência. Uma guerra fria. Ele me analisava, calculando cada palavra minha, cada movimento. O ar parecia rarefeito.
“Ciro disse que ela o trocou por você. Qual é a sua versão, Deputado?”
Ele suspirou, o som de uma paciência forçada. “Aurora era um ativo e um passivo. Um troféu e uma bomba-relógio. Eu gostava do troféu. Mas a bomba estava prestes a explodir.” Ele se inclinou para a frente, a máscara de político caindo por um instante, revelando o homem por baixo. Um homem acostumado a eliminar problemas. “O ex-namorado dela, o produtor de cinema… Alencar. Ele andava obcecado. Ligava para ela, aparecia nos lugares. Não era mais amor, era possessão. Eu mesmo a avisei para manter distância. Disse que homens com o ego ferido são mais perigosos que qualquer bandido de morro.”
É como se a gente estivesse montando um quebra-cabeça da personalidade dela, mas cada peça vinha da visão de um homem diferente.
Para um, ela era a mulher ambiciosa que só pensava em subir na vida. Para outro, era uma companheira divertida e cheia de vida. Para um terceiro, era uma figura quase inatingível, um troféu a ser conquistado. E, claro, em quase todas essas relações, o sexo era uma peça central.
Eu percebia que, por trás da fachada de poder e sucesso, todos esses homens se sentiam, de alguma forma, usados ou ameaçados pela vítima. Ela sabia dos segredos de cada um. Tinha informações que poderiam destruir reputações e casamentos. E aí ficava a grande questão: quem deles teria mais a perder com Aurora viva? O assassino não era um criminoso qualquer. Era alguém poderoso, que se achava acima da lei e que acreditava ter todo o direito de “calar” aquela mulher que ele não conseguia controlar.
E era nesse ponto, meus amigos, que a história chegava a seu clímax.
Depois de ouvir todas as versões, de mergulhar na intimidade de Aurora através do olhar de seus amantes, eu, Robert, finalmente conectava os pontos. Eu entendia não apenas quem a matou, mas principalmente por quê. A motivação do crime não foi um simples ataque de ciúmes ou uma briga por dinheiro. Foi algo mais profundo. Foi o ódio e o medo que a liberdade de Aurora provocava. O assassino foi o homem que não suportou ser apenas mais um na vida dela, que não aceitou o fato de que ela era a dona do próprio destino e do próprio corpo. A morte dela acabava expondo a podridão de todo aquele universo de luxo e aparências. Minha intuição apontava para o ex-namorado. A motivação dele seria a mais clássica do gênero: o crime passional motivado pelo orgulho ferido. Ele não aceitava o fato de que Aurora o havia deixado e vivia uma vida livre e independente, sem ele. Matá-la foi a forma brutal que ele encontrou para reafirmar seu poder e controle sobre a mulher que ele sentia que lhe “pertencia”, mesmo após a separação.
Chegamos ao estúdio X27. Um prédio de vidro e aço, frio, impessoal, um lugar onde sonhos são fabricados e vidas são destruídas. Meu parceiro, um cara que já viu de tudo, mas que ainda se impressiona com a podridão humana, estava ao meu lado. Entramos. Sem cerimônia, sem pedir licença. Alencar, o produtor de cinema, o ex-namorado, estava lá. Sentado em sua cadeira de diretor, cercado por telas, por ilusões. Ele nos olhou. Sem surpresa. Como se estivesse esperando. Ou como se já soubesse o roteiro.
Estavam lá as evidências: uma carteira do caríssimo cigarro “Karo”, vários pares de sapatos de solado grande e, com certeza, entre eles estaria o da cena do crime, além da própria expressão do suspeito.
Eu não perdi tempo com rodeios. A vida é muito curta para isso. Fui direto ao ponto. Contei a ele. Cada detalhe. A história de Aurora. A vida dela. A liberdade dela. E o ódio dele. O ódio que o levou a matá-la. Minha voz. Firme. Sem emoção. Ele ouviu sem piscar, como um ator ensaiando sua próxima cena. E quando terminei, ele sorriu. Um sorriso frio. Vazio. O tipo de sorriso que te avisa que estamos lidando com um monstro. Ele não se arrependia. Nunca se arrependeria.
Algemas. O som do metal que te lembra que a justiça, às vezes, funciona. Ou que a gente só pega os peixes pequenos. Ele foi levado. Sem resistência. Como um cordeiro indo para o matadouro. E eu fiquei ali. No meio daquele estúdio. Cercado por ilusões. Por mentiras. A vida é assim. A gente corre atrás da verdade, e quando a encontra, ela é sempre mais feia do que a gente imaginava.
O sol já estava nascendo. Mais um dia. Mais uma história. A gente volta pra casa. O cheiro de café. O cheiro de jornal velho. A vida continua. Ou não. Quem sabe? Eu continuo aqui. Com meu cigarro. E o mundo desabando lá fora. E eu? Eu não ligo. Nunca liguei. E você? Você ainda está lendo? Que bom. Sinal de que a vida, mesmo na sua forma mais crua, ainda tem algo a oferecer. Ou não. Quem sabe?