Recalculando Rota: Direto para o Inferno

Tem certas coisas na vida que a gente tem que passar. Tipo um rito de passagem, sabe? Pra te preparar, nos deixar casca grossa. Porque se não fosse o que eu passei, o que eu aprendi, a porra toda teria ido pro caralho. E eu, Robert, não estaria aqui pra contar. Tô falando do meu tempo no exército, no Batalhão de Polícia do Exército. Aquele inferno de disciplina, de rino, de suor. O tempo que virei instrutor de tiro, sentindo o cheiro da pólvora, o recuo da arma, a precisão da morte. E as instruções de fuga e evasão, onde a gente apanhava, era perseguido, sentia o gosto da terra na boca. E depois, o tempo emprestado pra Polícia Militar. A rua. A realidade nua e crua. Tudo isso, meu caro, me ajudou a permanecer vivo numa das piores noites da minha vida. Uma noite que, pra ser sincero, ainda me assombra. Mas não me quebra. Nunca me quebra. Joe Goldberg, ele entenderia essa necessidade de se preparar, de antecipar o perigo. Ele faria um plano, um esquema. Eu? Eu só sinto o cheiro da merda no ar e me preparo pra briga. Porque a vida é uma briga. E eu nasci pra brigar.

Era fim de tarde no Rio de Janeiro. Avenida Brasil com um engarrafamento quilométrico. O tipo de coisa que te faz querer arrancar os cabelos, ou a cabeça de alguém. O sol batia no para-brisa, um inferno de luz e calor, e o ar condicionado do carro, uma piada!

O cheiro de fumaça, de ônibus velho, de gente cansada. A vida escorrendo pelo ralo, minuto a minuto. E eu, ali, parado, vendo a vida passar. O GPS com aquela voz metálica e irritante me mandou pegar um atalho.

Um atalho.

Sempre uma armadilha, não é? Mas a gente, idiota, segue. E eu segui. Sem querer, sem perceber, entrei numa favela chamada Malvinas. Um nome que não diz nada pra quem não conhece. Mas pra quem conhece, é um aviso, um presságio. Dentro do local eu fui seguindo o caminho traçado, mas as ruas foram ficando mais estreitas, as casas mais apertadas e o cheiro mudou. De fumaça e ônibus, pra esgoto e maconha. O tipo de cheiro que te avisa que você não está mais no seu território, e eu comecei a desconfiar. O carro avançava cada vez mais devagar. Cada metro, um aviso. Cada sombra, um perigo. O coração batia mais forte. Leatherface estaria em casa aqui, ou talvez ele fosse um dos moradores. Quem sabe? A gente nunca sabe quem está por trás da máscara. Ou por trás da cortina. E foi nesse momento, nesse exato momento de desconfiança, que o vidro quebrou. Estilhaços voando. O ar gelado entrando. E o cheiro, o cheiro de pólvora, o cheiro da morte. Cheiro que você nunca esquece. E eu sabia. Era tiro. Mais um vidro quebrou, e ao longe, vi as sombras. Pessoas disparando contra o carro, contra mim.

A vida, meu caro, é uma piada. E eu, o palhaço.

Bati com o carro, depois de ficar desgovernado em um poste já gasto, que parecia um velho bêbado encostado na parede. O impacto, o cheiro de borracha queimada e metal retorcido. Minha cabeça estalou no volante e tudo clareou por um instante, mas a dor, essa velha conhecida, logo tomou conta. Larguei o celular para trás – não havia tempo para luxos, apenas para sobreviver. E eles estavam vindo. As sombras se tornaram vultos. Gritos. O som dos passos, da respiração ofegante. Eram muitos. E vinham rápido. Deviam ter achado que eu era algum espião da polícia ou de alguma das muitas quadrilhas  rivais. Tanto faz. Pra eles, eu era só mais um alvo. E eu não era de ser alvo. Nunca fui.

Corri, mergulhando no fedor de esgoto e lixo que denuncia a frágil fachada da civilização. Foi quando vi o barraco com a porta entreaberta. Um convite ou uma armadilha? Sem escolha, entrei.

O barraco. O lugar era pequeno, sufocante. O ar denso carregava o cheiro de mofo e vida confinada. No meio da bagunça, sob a luz amarelada e fraca de uma lâmpada pendurada, suficiente somente pra revelar o cenário, uma mulher amamentava um bebê. O som suave da sucção era a única paz naquele caos. Ela se assustou, os olhos arregalados de medo, mas consegui acalmá-la com o olhar e a voz. Contei minha história, sem rodeios, e pedi ajuda. Mesmo aterrorizada, ela ouviu. Por um instante, isso quase me fez acreditar na humanidade.

Mesmo na penumbra, observei cada detalhe dela, como um predador analisa a presa, ou um artista, sua obra. Pequenina, morena, com a pele macia num tom de café com leite. Bonita. Sim, bonita, apesar das marcas que a vida já havia lhe deixado. Os olhos castanhos claros, profundos, que pareciam ter visto demais. Parecia ter dezessete anos, mas carregava o peso de trinta. O corpo, embora miúdo, tinha curvas que prometiam. Era o tipo de mulher que te faz esquecer o mundo lá fora, que desperta um desejo duplo de proteger e possuir. Perguntei se podia ficar um tempo. Se o marido dela voltaria cedo. Ela balançou a cabeça. Mãe solteira. Sozinha em casa. O tipo de informação que te faz pensar. O tipo de informação que te dá uma vantagem. Ou uma responsabilidade. Quem sabe?

Nossa conversa foi tensa, mas estranhamente amigável. Ela se chamava Luna, um nome bonito, poético, que não combinava com aquele inferno. Contou que o marido morreu quando a quadrilha que agora me caçava invadiu a favela.

Ele era um cara bom, ela disse, só queria trabalhar, ter uma vida digna.

Mas a vida, essa puta, não perdoa. Ela falou das dificuldades de morar ali, sozinha, com um filho pra criar, do medo constante, a falta de tudo. E eu, Robert, vi nos olhos dela um ódio profundo por aqueles caras. Um ódio que me deu a certeza de que ela não me entregaria. Ela me apresentou o filho, o pequeno Gael. Um anjinho de olhos grandes, que não se afastava do peito da mãe, nem com a minha presença. Ele mamava, com a boca pequena, como se o mundo lá fora não existisse. E por um segundo, eu senti uma ponta de inveja. Daquela inocência. Daquela paz. Mas a paz, meu caro, é um luxo que a gente não pode se dar.

De repente, uma batida forte e seca na porta. O som gelou minha espinha. Luna se encolheu, apertando o bebê contra o peito. O cheiro do medo dela era palpável. Sem pensar, deslizei para debaixo da cama, num espaço apertado com cheiro de poeira e vida escondida. A porta se abriu rangendo.

“E aí, Luna, tudo em paz?”, disse uma voz grossa, falsamente amigável.
“Tudo em paz, Rambo”, ela respondeu, a voz trêmula, mas firme. “Só eu e o Gael.”

Debaixo da cama, eu via apenas as botas sujas e as calças rasgadas. O cheiro deles era uma mistura de suor, pólvora e morte. Um ficou de vigia no beco, um sujeito que os outros chamavam de Rambo. Ele exibia seu arsenal como acessórios de moda: uma Glock na cintura, uma metralhadora nas costas e quatro granadas penduradas no pescoço, como colares . Ele se achava invencível. E eu, deitado na poeira, só pensava: “Esse vai ser o primeiro”.

Quando seus comparsas foram revistar outras ruas, o beco ficou apenas com ele. A oportunidade perfeita. Silencioso como uma sombra, saí de debaixo da cama, peguei uma faca afiada na cozinha e deslizei para fora. O ar da noite, o cheiro de esgoto e o cheiro dele. Meu instinto de caça estava no controle.

Lembrei do meu treinamento de Krav Magá. Anos de suor e disciplina gravados na minha memória. Dominei-o com rapidez e precisão, tapando sua boca para abafar qualquer som. A faca entrou. Uma, duas, três vezes. Não para matar, mas para paralisar, para que sentisse cada corte, cada rasgo. O sangue quente me lembrava como a vida é frágil, que a morte é real. Ele se contorcia, mas não podia gritar. Não era um assassinato, era uma lição de sobrevivência. Com sorte, uma boa alma o levaria para o hospital. Ou seria mais um para a minha conta.

A vida é assim. A gente faz o que tem que fazer. E não olha pra trás.

Os outros tentaram contato pelo rádio. O silêncio que se seguiu foi o aviso de que voltariam. Eu já os esperava com uma das granadas de Rambo na mão. Lancei o brinquedo no meio deles.  O som, a explosão, o clarão, os gritos, o cheiro de pólvora. A favela inteira desabou em tiros e luzes. O tipo de inferno que você só vê em filme, mas era real. E eu estava no epicentro dele. Invadi um comércio pela janela, o som do vidro quebrando, e me abriguei atrás do balcão.

Usei a pistola e a metralhadora do bandido para impedir qualquer um que tentasse entrar, alternando entre as armas e contando cada disparo. Sabia que, quando a munição acabasse, ainda teria três granadas. A última poderia ser para uma morte épica, levando comigo quem conseguisse passar.

No último carregador, já quase me despedindo da vida, ouvi o som mais lindo do mundo: a sirene de uma viatura do BOPE. Era como uma sinfonia no meio do inferno. Talvez o inferno que eu causei os tenha atraído. Ou talvez o destino estivesse me dando uma segunda chance. Saí da loja com as mãos para o alto, gritando para não atirarem. A voz rouca, a garganta seca.

Eles me pegaram.

As algemas gelaram meus pulsos. O cheiro de borracha queimada e o som das sirenes me envolveram enquanto me jogavam na viatura. Estou frito, mas é melhor ser preso do que estar morto. Às vezes, a gente precisa se render para sobreviver. Como disse o guerreiro Medjai Ardeth Bay no filme “A Múmia” de 1999:

“Viva hoje para lutar amanhã.”

 

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