A garrafa na minha frente. Kavalan. O rótulo elegante parecia um insulto para a madeira lascada deste balcão. Você aí, que tá lendo, provavelmente nunca ouviu falar. O bagulho é de Taiwan. Caro pra caralho. E já me encara pela metade. Cada gole que desce queimando é o preço de um aluguel em algum buraco por aí. E daí? O dinheiro existe pra isso. Pra ser queimado.
Meu nome é Robert. E com meia garrafa de whisky na cabeça, a verdade fica mais simples, mais crua. Este boteco na Tijuca? Era meu. Não no papel, claro. Papel é pra otário. Era meu no olhar. No respeito torto que a gente arranca na marra com um whisky de luxo numa mão e o caos na outra. Cada cadeira bamba, cada azulejo encardido, cada bêbado que sabia até onde a vista alcançava. Tudo meu. Eu não tinha poder, desses de caneta e contrato. Eu tinha presença. E hoje, essa presença vinha com cheiro de malte. Eu decidi, um dia, que seria o cara a ser ouvido. E fui. Simples assim.
Você deve achar que é fácil, né? Manter a coroa na cabeça. Mas cada noite era um teste. Zé-ninguém querendo medir força, malandro testando a fronteira. Chegavam de tudo que era canto. Da Zona Sul, com aquele ar de quem se perdeu, até a bandidagem que descia do morro pra beber em paz. E a paz era eu. Se me desafiavam? A noite terminava mal. A calçada do outro lado da rua já viu mais sangue do que muito açougue por aí. O cheiro de creolina de manhã, pra limpar a bagunça… já era parte da paisagem.
Eu achava que dava conta de qualquer parada. Qualquer um.
Até ele.
O nome dele era Tadeu. E ele era… Puta que pariu, ele era insuportável. Não era grande. Não era forte. Não tinha pinta de nada. Era só um cara. Um rosto comum que começou a aparecer toda santa noite, no mesmo banco do balcão. O que ele fazia? Nada. E tudo. O jeito que ele segurava o copo, com o mindinho levantado. Uma piadinha idiota sobre o time de futebol que só ele ria. Um assobio baixo e desafinado.
Será que ninguém tá vendo isso? A pergunta martelava na minha cabeça, regada a álcool taiwanês. Essa provocação silenciosa.
Era uma tortura. Uma arte. Ele não me ofendia direto. Nunca. Mas os comentários dele… sempre no ar. Sobre como “certas pessoas” se levam a sério demais. Sobre como “o rei do pedaço” às vezes é só o mais barulhento da turma. Eu sentia cada palavra como um soco no fígado. E o pior: só eu parecia perceber. O resto do bar continuava na sua, rindo, bebendo, vivendo. E eu ali, cozinhando por dentro. Uma panela de pressão prestes a explodir.
A obsessão virou minha sombra. Eu via o sorriso de canto de boca dele até quando eu estava em casa, tentando dormir. O bar virou um inferno particular. Meu reino, agora assombrado por um bobo da corte que só eu via como ameaça.
Aquela noite o vento da rua chicoteava a porta do bar. Um prenúncio, talvez. Ele estava lá. No lugar de sempre. Quando o garçom trouxe o prato do dia, um bife à parmegiana, ouvi a voz dele, baixa, mas clara como um trovão na minha mente: “Esse queijo aí… parece plástico derretido, né não?”.
Foi a gota d’água. O whisky subiu de vez.
Não sei bem o que aconteceu. Levantei, a cadeira arrastou no chão com um grito. O bar inteiro congelou. Todos os olhos em mim. E eu apontei o dedo, trêmulo de raiva, para aquele infeliz.
“CHEGA!”, eu berrei. A minha voz saiu rasgada, feia. “Acabou a palhaçada. Acabou, seu merda! Some daqui. AGORA!”
Um silêncio de cemitério. Um silêncio que eu nunca tinha provocado antes. Era o silêncio do espanto, não do medo. Eu saboreei. Finalmente. A vitória. Ele ia levantar, humilhado, e sumir pra sempre.
Tadeu me olhou. Pela primeira vez, não havia ironia no seu rosto. Só confusão. Ele se encolheu no banco, um cachorro assustado. O gosto da vitória virou cinza na minha boca. Ele parecia tão… pequeno.
Foi quando Ciro, o dono de verdade (de papel passado e tudo), que estava limpando um copo atrás do balcão há uns vinte anos, se aproximou devagar. Colocou a mão no meu ombro. A mão era pesada. Pesada de pena.
“Robert…”, ele disse, a voz baixa, quase um sussurro. “De novo, cara?”
Eu não entendi. Pisquei. “De novo o quê? Tô botando ordem na casa!”
Ciro suspirou. Aquele suspiro que um pai dá antes de quebrar o coração do filho. Ele olhou pro banco onde Tadeu estava sentado. Depois olhou pra mim.
“Filho”, ele disse. “Não tem ninguém aí.”
Eu olhei.
O banco estava vazio. O copo meio cheio, a piada, o assobio… não tinha nada. Só a madeira gasta do balcão, refletindo a luz amarelada e triste da lâmpada.
Virei o rosto para a freguesia. Ninguém me olhava mais com medo. Era outra coisa. Uma coisa mil vezes pior. Era pena. Compreensão. Eles não viam um rei defendendo seu trono. Viam um maluco gritando com um fantasma, bêbado de um whisky que não podiam pagar.
Meu reino não ruiu com um estrondo. Ruiu com um silêncio constrangedor.
Aquele Tadeu… o maior inimigo que eu já enfrentei… ele nunca existiu fora da minha cabeça. E essa, meu caro leitor, é a pior derrota de todas. Perder pra si mesmo. Na frente de todo mundo.