Space X. Órbita do planeta Terra. O espaço. O vazio. O silêncio.
Aaaa, o vazio. O silêncio. Não o silêncio da paz, mas o silêncio que grita, que te engole. Eu, Robert, um brasileiro, mas sem sobrenome. Só Robert. No traje espacial. Já é o suficiente. Não sou o primeiro astronauta brasileiro, nem vou ser o último. Não sou o primeiro astronauta brasileiro, nem vou ser o último. Não sou pioneiro de nada. Mas por originalidade, posso ganhar um Nobel: sou o primeiro a não adotar nenhum sobrenome no traje espacial. . Só Robert. Isso já diz muito, não é? Ou talvez não diga porra nenhuma. A gente se apega a essas pequenas rebeldias pra não enlouquecer. Ou pra fingir que não enlouqueceu.
Minha companheira de cabine, Lúcia. Americana. Piloto da espaçonave. Uma mulher de poucas palavras, mas de olhos que viam tudo. Pele branca, baixinha, com cabelos pretos longos que, mesmo presos no coque regulamentar do traje, teimavam em escapar em mechas rebeldes, como fios de seda negra desafiando a gravidade. Os olhos castanhos, profundos, pareciam absorver toda a luz do universo, e um sorriso fácil, que revelava dentes perfeitos, era um contraste quase chocante com a seriedade da missão.
Ela tinha a postura de quem carrega o peso do mundo nas costas, mas a leveza de quem sabe que, no fim das contas, somos apenas poeira estelar. Uma força tranquila, como um rio subterrâneo, que corre por baixo da superfície, mas que tem o poder de mover montanhas. Não era uma boneca de porcelana, mas uma rocha esculpida pela disciplina e pela inteligência. O tipo de pessoa que você confia sua vida, mesmo sem saber muito sobre a dela. E a gente estava lá, flutuando nesse caixão de metal, a caminho de trocar um módulo defeituoso em dois satélites próximos. Satélites secretos, claro. Do governo americano. Monitoração. Espionagem. A gente não pergunta muito. A gente só faz o trabalho. Como um bom operário, ou um bom assassino de aluguel. A diferença é que a gente não suja as mãos de sangue. Só de graxa espacial.
A decolagem. Ah, a decolagem. O corpo colado no assento, a vibração que te atravessa os ossos, o rugido dos motores que te engole. Adrenalina pura. O tipo de coisa que te faz sentir vivo, mesmo sabendo que a qualquer segundo tudo pode virar pó. É como um bom porre, ou uma briga de bar. Você sabe que pode dar merda, mas a sensação vale a pena. É a vida, te lembrando que você ainda respira. Por enquanto.
E então, o silêncio de novo. Mas um silêncio diferente. O silêncio do espaço. Lá fora, a Terra. Uma bola azul e branca, girando no vazio. Linda. Imponente. E redonda. Mandando os terraplanistas chuparem um canavial de rola.
Eu via a Terra, e pensava: que porra a gente tá fazendo aqui em cima? Pra que toda essa correria, essa briga por pedaço de terra, por dinheiro, por poder? Lá de cima, tudo parece tão pequeno, tão insignificante. Como formigas num formigueiro. E a gente, se matando por migalhas. Que piada. Mas a gente continua. Porque é o que a gente faz. A gente vive. E morre. E no meio, a gente tenta encontrar algum sentido. Ou não. A gente só segue em frente. Porque não tem pra onde ir.
Para otimizar o tempo, dividimos as máquinas. Cada um para um satélite diferente. Soltos no espaço, presos apenas por um cordão umbilical à nave. Como bebês gigantes, flutuando no útero cósmico. Eu comecei a trabalhar no meu equipamento. A rotina. A monotonia. O tipo de coisa que te faz esquecer que você está a milhões de quilômetros de casa, no meio do nada. E então, o flash. Uma fração de segundo. Algo passou por mim. Rápido. Muito rápido. Como um pensamento ruim que você tenta afastar, mas que já deixou sua marca. Pode ter sido uma peça de um satélite. Um parafuso. Um pedaço de lixo espacial. Quem se importa? No espaço, tudo é lixo. E a gente, mais um pedaço de lixo, flutuando sem rumo.
Um desmaio momentâneo de dor. Alguns segundos. Acordei com o braço esquerdo dormente. Não dormente como quando a gente dorme em cima dele. Dormente como um pedaço de carne morta. E sem mão. A mão. Aquela que me conectava ao mundo, que me permitia tocar, sentir. Agora, um vazio. Um coto irregular, exposto ao vácuo. O frio do espaço cauterizou o ferimento, transformando a carne em algo rígido, quase plástico. Sem sangue escorrendo, sem o drama que a Terra esperaria. Apenas a visão grotesca de um membro quebrado, a carne retorcida e congelada, como um pedaço de madeira velha. Eu vi minha mão esquerda ainda no módulo, no satélite. Flutuando ali, inerte, um apêndice inútil, um pedaço de mim que agora pertencia ao vazio. E o cordão. O cordão umbilical. Cortado. Voando no espaço. A conexão rompida. O ar. Escapando. Pelo corte do traje espacial. Onde o braço foi amputado. Um assobio sutil, quase inaudível, mas que para mim era o som da minha vida escorrendo, se perdendo no infinito.
Eu girava no meu eixo. Desnorteado. O céu girava. Uma hora, a espaçonave. Na outra, a Terra. E eu, girando. Me afastando da nave. Como um pião sem controle. A Lúcia. Ela não percebeu. No espaço, não tem som. O grito. A explosão. Tudo na minha cabeça. O tipo de coisa que te faz questionar a realidade. O que é real? O que é invenção da mente? No espaço, a linha é tênue. E eu, no meio dessa linha, tentando não cair.
Eu decidi. Tinha que tomar uma decisão. Em alguns minutos, o ar ia acabar. Estava saindo pelas frestas que nem o traje espacial, nem o gelo do espaço, conseguiram selar. E Lúcia. Ela não tinha visão do que tinha ocorrido. A Space X. Entre nós. Uma barreira invisível. Uma ironia cruel. A tecnologia que nos trouxe até aqui, agora nos separava.
Tentando resgatar uma última força e com muita dificuldade por conta da grossura do traje e do braço decepado forcei minha musculatura e arqueei meu corpo. Posição fetal. Soltei os velcros térmicos que prendiam a bota. Quando a pele foi exposta, ouvi novamente a explosão, mais uma vez somente em minha cabeça. Não um som de verdade, mas a reverberação da dor, um estalo seco vindo de dentro de mim. Desta vez, tentei ao máximo não desmaiar. A dor. Um inferno. Mas a mente. Clara. Focada. Eu precisava sobreviver. Peguei em minha mão direita meu pé esquerdo. O pé. Aquela parte do corpo que te conecta ao chão, à realidade. Agora, um peso morto, um pedaço de carne inútil. Mesmo com o frio e a radiação, o pé não soltou completamente do corpo. Tive que puxar, com toda a força que me restava. Senti os tendões esticarem, os ossos rangerem, a carne congelada quebrar. Um som úmido ressoou na minha cabeça como um trovão. Ele se soltou do corpo como se fosse um galho seco, um pedaço de madeira podre se desprendendo de uma árvore. E me preparei. Para uma atitude tão visceral quanto louca. Calculei. Quando eu conseguisse ver a Terra em meu giro, eu agiria. Talvez pela última vez na minha vida. Atirando o meu pé em direção à Terra. Noventa por cento de chances de errar. E a morte certa. Mas com o movimento e a força, meu corpo seria atirado contra o pé. E no sentido contrário. Para cima do satélite. Uma aposta. Uma última cartada. O tipo de coisa que só um louco faria. Ou um homem desesperado. E eu, naquele momento, era os dois.
Consegui lançar, e com tristeza vi pela última vez uma parte de mim se afastando, em direção ao planeta natal. Como calculei, meu corpo se movimentou no sentido contrário, em direção ao satélite. Minha trajetória para o dispositivo estava rápida demais. O satélite se aproximava, um monstro de metal girando no vazio. Sem que eu conseguisse controlar meu movimento, fui de encontro a ele. Não deu tempo de pensar, de gritar, de sequer piscar. A antena. Uma lança de metal frio e implacável. Senti-a rasgar o traje, perfurar a carne da minha coxa esquerda. Não foi um corte limpo, foi um rasgo, uma penetração brutal que me fez ver estrelas, não as do espaço, mas as da dor pura e lancinante. O metal gelado avançava, triturando músculos, raspando o osso, uma sensação de dilaceração que se espalhava como fogo líquido por todo o meu corpo. Um grito mudo se formou na minha garganta, mas o vácuo não o ouviu. A antena me atravessou, parando, enfim, minha trajetória. Fiquei ali, empalado, um inseto espetado em um alfinete cósmico. Com o impacto, o satélite se mexeu, um rangido metálico que só existia na minha cabeça. E a antena de baixo, num movimento suave, puxou o cordão umbilical cortado, que se esticou até o limite. Essa tensão no cabo salvou a minha vida, pois chamou a atenção de Lúcia. Nesse momento, minha parceira apareceu. Desesperada. Para me ajudar.
Me tirou com todo cuidado da antena. Tentando ao máximo preservar o que restou da minha perna. Ela tentou pegar a mão. Mas eu a impedi. Não tinha mais finalidade para mim.
Depois que ela me colocou de volta na Space X, eu finalmente pude dormir. Descansar. A adrenalina foi baixando. Só me resta confiar nas habilidades médicas de Lúcia. Toda astronauta americana tem um treinamento de primeiros socorros em ambientes extremos. Sei que quando eu fechar os olhos, ou os abrirei em uma unidade médica em terra, ou talvez não os abra mais nessa realidade. Mas quem sabe? Vamos experimentar. A vida é uma aposta. E eu, Robert, ainda tinha algumas fichas para jogar.