O consultório do psicólogo cheirava a desinfetante barato e a esperança murcha. Um lugar onde a gente ia pra desenterrar fantasmas, ou pra fingir que não tinha nenhum.
Robert, ou melhor, eu, estava lá, afundado num sofá que já viu dias melhores. A luz era fraca, amarelada, como a de um bar no fim da noite. E o psicólogo, um sujeito com óculos finos e um ar de superior de merda nenhuma, me olhava com aquela paciência de quem recebe por hora.
– Até 6 de dezembro de 2032, eu falava com Deus, eu disse, a voz arranhada, como se tivesse engolido areia.
-Literalmente? Ele perguntou ajeitando os óculos e provavelmente pensando estar falando com um maluco ou bêbado.
-Literalmente. Doutor. Não que eu ouvisse uma voz, sabe? Mas sentia a presença. As ordens. Tipo, uma vez, eu ia atravessar a rua. Tava lá, no meio-fio, pronto pra dar o passo. Aí, uma parada. Uma sensação. Voltei. Segundos depois, um carro elétrico, silencioso, desgovernado, passou onde eu estaria. Bateu na parede. Se eu tivesse dado o passo, seria só mais um corpo estirado no asfalto do Rio. Mas do dia 6 pra cá, faz uns seis meses, nada. Nem um sussurro. Nem um arrepio. O velho sumiu.”
O psicólogo franziu a testa, mas não disse nada. Só anotou.
– Temos que ver o que houve no dia 6, ele murmurou, mais pra si mesmo do que pra mim.
– Algo que silenciou sua mente, marcamos pra próxima semana.
Como se uma semana fosse mudar alguma coisa. Como se a mente fosse um interruptor que a gente liga e desliga. Eu sabia que não era. Mas ele recebia por isso. E eu, bem, eu não tinha mais nada a perder. Ou a ganhar.
Dezembro de 2032. Rio de Janeiro. A cidade que nunca dorme, mas que te deixa com uma ressaca de mil demônios. A minha batia na cabeça como as ondas no Arpoador em dia de temporal. Um martelar constante, sem trégua. O apartamento na Glória, um buraco que eu chamava de lar, cheirava a cigarro velho e a decisões ruins. Cada tragada, uma lembrança de algo que eu devia ter feito diferente. Mas não fiz. E agora, as cinzas se acumulavam, como os arrependimentos.
Ultimamente, eu era o homem mais sortudo do mundo. Ou o mais azarado. Depende do ponto de vista. Escapei de acidentes estranhos, tentativas de assassinato, roubos. Parecia que a morte me dava um beijo na testa e seguia em frente. Me dava até medo de sair de casa. A rua era uma armadilha. Cada esquina, um novo perigo. Mas eu saía. Porque ficar em casa era pior. Era ficar sozinho com os meus pensamentos. E eles eram piores que qualquer bala perdida. Mas minha intuição, aquela voz na minha cabeça que me salvava, de repente tinha parado de me acompanhar. Faziam 6 meses.
***
O telefone tocou. Estridente. Um alarme de incêndio na minha paz podre. Era um detetive. Um tal de Bastos. A voz dele parecia ter sido curada em anos de nicotina e café frio. Grossa, arrastada.
– Senhor Robert? Sinto muito em lhe informar, mas o senhor Hélio Fuller está morto.
Puta merda. Hélio. Meu sócio. Meu mentor! O gênio por trás da nossa galinha dos ovos de ouro, a “Onirica-Tech”. Morto. E, pela pausa dramática do tira, eu já sabia o resto. Eu era o último a tê-lo visto. Eu era o prato principal no banquete dos abutres.
Dito e feito: eles apareceram na minha porta na tarde. Dois detetives. Sempre são dois. Um pra fazer o papel do policial bom, outro do “tira” ruim. O roteiro de sempre. Bastos começou:
– Me perdoe a pergunta, mas onde o senhor esteve a noite passada?
– Eu estive aqui em casa, como sempre. Programando. Você pode se certificar vendo as câmeras da rua, do prédio e meu sistema de segurança interno.
A verdade era que eu estava afundado em linhas de código, tentando decifrar o que Hélio andava aprontando. Minha vida era um loop infinito de café, cigarro e tela de computador. Uma rotina que faria o Walter White se sentir um amador.
– É o que todos dizem,
rosnou Alencar, o policial ruim. Aquele tipo que parece ter nascido com um chiclete grudado na sola do sapato e um mau humor crônico.
– Esse aí deve ter reprogramado as câmeras.
Ele me olhava como se eu fosse o Joe Goldberg, pronto para a próxima obsessão. E, de certa forma, eu era.
Bastos me olhou, a voz mais suave, mas os olhos duros.
– Tudo bem, senhor Robert. Mas não saia da cidade nesses dias, podemos solicitar sua ajuda para elucidar esse caso estranho.
– Por que estranho?
Eu sabia que era estranho. Hélio não era de morrer assim, sem mais nem menos. Ele era um rato de laboratório, um gênio recluso.
– Não posso falar para o senhor detalhes da investigação, mas posso informar que o senhor Hélio foi assassinado em casa, e já reviramos tudo, sem sinal de arrombamento, ataque ou assalto. Na verdade, ninguém esteve com ele. É como se ele tivesse sido morto por uma entidade sobrenatural.
Entidade sobrenatural. Pura balela. Mas a forma como ele disse, com um certo ar de mistério, me fez pensar. Hélio sempre foi um cara que vivia no limite da realidade, um cientista maluco com um toque de Nikola Tesla.
Onirica-Tech. O nome já dizia tudo. Sonhos. Tecnologia. A maior empresa de Realidade Virtual já criada, desenvolvida totalmente no Brasil, com tecnologia tupiniquim. A gente não vendia jogos, a gente vendia mundos. Criamos o jogo Glitch para Playstation 15, onde o jogador conectava sua mente aos terminais de sobrerrealidade e voltava ao mundo no ano de 2024. A simulação era tão perfeita do Rio de Janeiro que os habitantes de lá, os nossos bonecos de silício, choravam, amavam e sangravam sem saber que eram apenas linhas de código numa máquina fria. Tivemos o cuidado de criar cada personagem com suas memórias desde seu nascimento virtual, e formatávamos o espaço de memória quando eram mortos nas diversas aventuras em que os jogadores participavam. Uma espécie de Westworld, mas sem os robôs e com mais caipirinha. A primeira versão do jogo era um mundo aberto do Estado do Rio de Janeiro e estávamos trabalhando para conseguir evoluir os mapas para o Brasil e alcançar o mundo todo até o final da década.
Antes de morrer, Hélio entrou em contato comigo. Disse que queria me contar algo que descobriu sobre “Glitch”, na simulação do Copacabana Palace. Ele me falou que era algo que eu não iria acreditar e que mudava tudo no mundo, mas era tão incrível que ele não podia me dar a notícia por telefone. Será que teria algo a ver com a morte dele? Eu precisava saber o que ele descobriu. E a única maneira era entrar no brinquedo, coisa que eu – um homem totalmente analógico, mais pra um Don Draper do que pra um Neo – nunca tinha feito. Nunca. Mas a curiosidade, essa puta velha, me arrastava para o abismo. E eu, como um bom cachorro, ia atrás.
No laboratório, o cheiro era de metal e ozônio. Um cheiro de futuro enferrujado. A cadeira de imersão parecia uma geringonça de dentista futurista, dessas que te prometem um sorriso perfeito e te entregam um inferno de dor. Enquanto a assistente, uma garota com cara de quem preferia estar em qualquer outro lugar, aplicava o gel condutor na minha nuca, uma mulher entrou. Alta, um vestido simples que não conseguia esconder a tensão nos ombros. Olhos verdes que pareciam ter visto mais do que deviam. Olhos de quem carrega um segredo pesado, como um saco de cimento nas costas.
– Sou Juliana, ela disse, a voz firme, mas com um tremor quase imperceptível. “Filha do Hélio.”
Filha? Hélio era casado com o trabalho. Um monge da tecnologia. Um cara que vivia pra programar e pra cheirar café. Aquilo fedia a problema. E eu, meu amigo, estava com o faro apurado pra desgraça. Como um cão farejador de encrenca. Fiquei quieto, analisando cada poro dela, cada respiração. Ela estava mentindo? Ajudando? Atrapalhando? Na minha paranoia, todo mundo era suspeito. Inclusive eu mesmo. Eu via nela a mesma aura de mistério que me atraía e me repelia. Era como se ela fosse um enigma, e eu, um detetive particular, sem salário, mas com uma sede insaciável por respostas.
Ela falou:
– Você tem que conversar comigo antes de entrar aí.
Mas eu estava muito ansioso pra entrar. A verdade, essa puta, me chamava. Pedi pra minha assistente a acompanhar até a sala de espera. Ela hesitou, me lançou um olhar de quem dizia ‘você vai se foder’, mas acabou cedendo e saiu.
– Estou dentro!
Sinalizei pra assistente. O mundo se dissolveu num zumbido branco. E então, a explosão. Pim-ba.
***
Estou de pé na esquina da Avenida Rio Branco com a Sete de Setembro. Ano da graça de 2024. O barulho dos antigos ônibus que funcionavam a óleo diesel, um ronco de dinossauro mecânico. O cheiro de maresia misturado com a fumaça dos carros antigos, um perfume de decadência e vida. A luz amarelada do sol de inverno batendo nos prédios, pintando o concreto com um tom de melancolia. No reflexo de uma vitrine, não vejo meu rosto cansado de 2032. Vejo Fernando, um caixa de banco com um bigode ralo e um olhar assustado. Meu avatar. Um Zé Ninguém, um peão no tabuleiro de xadrez de Hélio.
Minha missão era simples: encontrar a mensagem que o avatar de Hélio, um boêmio chamado Augusto, deixou pra mim no Copacabana Palace. Eu não saberia o local exato se me dirigisse à simulação do hotel. Tinha que achar o Avatar. A pista me levou a um bar fuleiro na Lapa, um lugar onde a tristeza dançava com a cachaça barata. Um inferno de boteco, com mesas grudentas e um cheiro de suor e desilusão. O barman, um sujeito chamado Mendes, me olhou de cima a baixo, como se eu fosse um rato que acabou de sair do esgoto.
– O que vai ser, chefe?
– Uma dose de qualquer coisa que mate a saudade! Eu disse, entrando no personagem. Aquele era o meu palco, e eu, o ator principal de uma peça de quinta categoria.
Passei horas naquele Rio simulado, sentindo uma nostalgia por um tempo que nunca vivi. Era real pra caralho. A dor de cabeça do Fernando era a minha dor de cabeça. A cerveja gelada era a minha cerveja gelada. E foi aí que o medo me pegou. Se é tão perfeito assim… qual a diferença? Era como se eu estivesse vivendo um episódio de ‘Black Mirror’, mas com mais samba e menos tecnologia assustadora. Ou talvez fosse ‘Matrix’, e eu, um pobre coitado que tomou a pílula errada. Minha mente, que antes era um labirinto de códigos e algoritmos, agora era um campo de batalha. Eu me sentia como o Joe de ‘You’, analisando cada movimento, cada palavra, tentando encontrar a falha, o ‘glitch’ na matriz. Mas sem o ímpeto assassino, claro. Apenas a obsessão por entender.
Finalmente, encontrei Hélio, ou melhor, Augusto. Ele estava desconfiado de mim. Aquele olhar de quem esconde algo, de quem sabe demais. Não teria outro meio de pegar a verdade dele se não por meio da violência. Invadi o bar. O cheiro de álcool e suor grudava nas paredes. Fui direto a ele.
– Me fala, qual o segredo escondido no Copacabana Palace!
– Não sei do que você está falando”, ele tentou se esquivar, a voz esganiçada.
Ele tentou fugir. Agarrei-o pela gola da camisa, um pano puído que cheirava a cerveja azeda e desespero. O bar era um antro de perdedores, e a briga, uma atração à parte. Mesas viraram, garrafas voaram. O Mendes, o barman, nem piscou. Já devia estar acostumado. Augusto era um osso duro de roer, um rato de esgoto que sabia se defender. Mas eu, Robert, o programador de mundos, tinha a fúria de quem foi enganado. Socos, chutes, joelhadas. Um balé desajeitado de carne e osso. O suor escorria, misturado com o sangue que brotava de um corte na minha testa. Finalmente, o derrubei. Com uma garrafa quebrada na mão, o vidro estilhaçado refletindo a luz suja do bar, apontei para a garganta dele. O cheiro de álcool e medo preencheu o ar.
– Me fala, porra! Ou eu te abro no meio!
Ele engoliu em seco, os olhos arregalados.
– Uma carta… no livro de Jorge Amado… na estante da escrivaninha… quarto 666… do hotel… A voz dele era um sussurro, um fiapo de som.
– Se for informação errada, eu volto. E aí, meu amigo, nem Deus te salva.
***
Chegando no hotel, aluguei o quarto. Como eu era o programador, tinha colocado meu avatar com recursos infinitos, já que o Copacabana Palace foi o hotel mais caro do Rio de Janeiro no século XX. Uma espécie de cheat code para a vida. Entrei no quarto, um luxo cafona que contrastava com a sujeira do bar. Fui à estante, um móvel empoeirado que parecia ter saído de um antiquário. Peguei o livro. E li a carta. Não era um aviso. Era um testamento de loucura.
“Robert, se está lendo isso, eu falhei em te falar pessoalmente, pois sei que serei “apagado” em breve. O que eu descobri… não é sobre 2024. É sobre nós. Sobre o nosso mundo. Essa perfeição toda, essa realidade… não é mérito nosso. É o padrão. Aqui há uma ligação com o mundo real, ou não! O programa-mãe. Robert, o nosso Rio de 2032… TAMBÉM É UMA SIMULAÇÃO. Nós somos os bonecos de alguém.”
A partir dai ele começou a explicar como encontrou o código por dentro da programação do hotel, picuinha de programador e NERD. Com tamanha informação eu não conseguia mais entender nada que vinha depois da palavra SIMULAÇÃO.
O chão sumiu. O ar sumiu. Meu mundo, minhas memórias, a ressaca, o detetive Bastos, a misteriosa Juliana… tudo era falso. Um programa rodando dentro de outro programa. Uma boneca russa de realidades digitais. Eu não era um criador. Eu era uma criatura. Uma marionete. Um personagem de videogame. Aquele momento foi como se o Capitão Nascimento me desse um tapa na cara e dissesse: ‘Pede pra sair!’. Mas não tinha pra onde sair. Eu estava preso.
***
Voltei ao meu 2032 com a alma em frangalhos. A cabeça girava, um carrossel de verdades e mentiras. Olhei para a cidade pela janela. Os carros, as pessoas, o Pão de Açúcar ao longe. Uma pintura. Um cenário. E eu era só um personagem com um script de merda. Um boneco de pano num palco de papelão. Aquele Rio, que eu achava que era meu, era só um pano de fundo. Uma projeção. Eu me sentia como o Truman Burbank, mas sem a câmera e com muito mais cinismo.
Não quis falar com Juliana. Saí pelos fundos, como um ladrão na própria casa, e fui direto para minha casa. O apartamento na Glória, antes um refúgio, agora parecia uma jaula.
Um momento mais tarde, à noite, a porta bateu. Uma batida seca, insistente.
Era Juliana. Ela estava ali, parada na minha porta, como uma aparição. Os olhos dela, antes um mistério, agora pareciam carregar o peso do mundo. Ela entrou sem pedir licença, como se fosse dona do lugar. E, de certa forma, era.
Foi Juliana quem juntou as peças, quando a encurralei no meu apartamento. As lágrimas escorriam pelo rosto dela, mas a voz era fria como aço, cortante como uma navalha.
– Eu não sou filha do Hélio. E o seu mundo não é o último nível.
Ela me contou tudo. O mundo real era 2052. Uma utopia tecnológica entediada. Um lugar onde a vida era tão perfeita que se tornava insuportável.
O jogo na qual eu fazia parte era uma simulação de mundo, e ela era a proprietária do sistema, junto com seu marido. Nós éramos a distração deles. Um videogame ultrarrealista. E eu… eu era a cópia de um homem de verdade, do marido dela. Um cara chamado David.
– David é quem estava guiando você, ela disse, a voz tremendo, mas os olhos fixos nos meus.
– Ele entrava na sua consciência para brincar nos mundos de vocês. Foi ele quem te criou, à semelhança dele. E era ele falando com você e você achava que era Deus.
Eu estava achando que tudo era uma grande brincadeira, um roteiro maluco de um filme B. Entrei no jogo dela, com um sorriso cínico.
– Por que ele parou de falar comigo?
– Pelo motivo que estou aqui, com meu avatar falando com você. Há exatamente 6 meses, David sofreu um acidente de carro e entrou em coma. E há algumas semanas ele morreu. Seu cérebro parou de funcionar e o corpo está sendo mantido vivo por aparelhos de inteligência artificial. Nem com toda a tecnologia do nosso mundo não há como reverter seu quadro. Mas em meu desespero acredito que existe uma última alternativa. Você é a melhor parte dele, durante uma década ele foi alimentando sua IA com experiências e habilidades dele. Quero tentar subir sua memória para o corpo dele.
– Você não pode simplesmente fazer uma cópia minha e colar no cérebro dele? Perguntei em tom de brincadeira, mas a ironia era um escudo para o pavor que começava a me consumir.
– Não, David, digo, Robert. O Glitch é um jogo espalhado por todos os continentes. Os NPCs (personagens guiados pelo computador) até podem ser duplicados, mas os avatares especiais, como você e eu, temos trilhões de terabytes de dados, armazenados em locais distribuídos pelo planeta e até em servidores fora da terra. Não tem como mesurar sua alma digital e não existe a possibilidade de te copiar, e se seu avatar morrer não tem como ser revivido. Por isso preciso te transferir deste mundo para o mundo real.
Uma coisa chegou na minha mente nesse momento, como um raio em céu azul.
– Se você controla tudo aqui então…. Foi você quem matou Hélio? A pergunta saiu da minha boca antes que eu pudesse pensar. Um tiro no escuro.
Ela hesitou. Um milésimo de segundo que pareceu uma eternidade. Os olhos dela, antes tão frios, agora marejados.
– Sim. Eu deletei o avatar porque ele descobriu que esse mundo era simulado e iria te falar. Fiquei com medo que você, numa atitude de loucura, morresse ou agisse com imprudência. Eu não o matei, ele era só NPC, um personagem. Eu só o desliguei do sistema. A frase saiu como um sussurro, mas o impacto foi como um soco no estômago.
– EU TAMBÉM SOU SÓ UM PERSONAGEM! Eu gritei! A voz embargada, e aquele grito ecoou no apartamento, nas paredes, na minha alma. Era a verdade nua e crua, sem maquiagem, sem floreios.
Com isso, eu corri. Corri para tentar fugir dela, para pensar direito, para digerir a informação de que eu não era um ser vivo, era apenas um aplicativo! Um programa de computador. Uma linha de código. Aquele momento foi como se o Tyler Durden me dissesse: ‘
Você não é seu emprego.
Você não é sua conta bancária.
Você não é o carro que você dirige.
Você não é o conteúdo da sua carteira de investimentos.’
E eu, um mero aplicativo, não era nada.
Corri para o terraço e subi no muro. O vento batia no meu rosto, gelado, cortante. Lá embaixo, as luzes do Rio de Janeiro piscavam, um mar de estrelas artificiais. Eu estava no décimo andar. O abismo me chamava.
Ela veio correndo em minha direção e parou.
– Robert, por favor, desce daí! Não faz nenhuma besteira! A voz dela era um lamento, um pedido desesperado. “Pensa bem, Robert! Você tem uma chance! Uma chance de ser real!”
Nisso, um pombo passou por mim. Um bicho imundo, com asas sujas, voando livre. E eu, preso num corpo que não era meu, num mundo que não era real. Eu me desequilibrei. Uma falha. Um glitch. Caindo do 10º andar do prédio. Durante a queda, minha vida, agora sabendo que era simulada, passou por toda minha cabeça. Um filme que iria acabar em alguns centésimos de segundos. A batida, a dor e tudo se apagou.
***
Mas o que aconteceu? NPCs vão para o céu? Eu abri os olhos. Estava deitado numa cama macia, numa sala branca que parecia ter sido esculpida em luz. Um hospital que parecia ter saído de um episódio de Amor, Morte e Robôs da Netflix. Um cheiro diferente. Não era o cheiro de cigarro velho, nem de maresia, nem de ozônio. Era um cheiro limpo, quase estéril. E a luz… era uma luz que eu nunca tinha visto. Uma luz real.
Meus olhos. Eles viam de um jeito diferente. As cores eram mais vivas, as sombras mais profundas. Cada detalhe, cada imperfeição, saltava aos meus olhos. Era como se eu tivesse vivido a vida inteira em preto e branco e, de repente, o mundo tivesse ganhado cor. E o ar. O ar entrava nos meus pulmões de um jeito novo, pesado, denso. Eu sentia cada molécula, cada partícula. Era como se eu estivesse respirando pela primeira vez. Uma sensação estranha, quase sufocante, mas ao mesmo tempo, libertadora. Era como se o mundo tivesse sido reformatado, e eu, um novo sistema operacional, estivesse sendo inicializado.
Juliana estava ao meu lado, o rosto manchado de lágrimas. Levantei a mão. Era uma mão de verdade. Senti o sangue pulsando, a pele, os ossos. Eu estava no corpo de David. O corpo dele no mundo real, agora vazio, tinha se tornado meu receptáculo.
Ela me falou que eu não morri na queda de imediato. Nos meus poucos minutos de vida, ela saiu do seu avatar, foi nos servidores do jogo e fez o upload de imediato, passando o que restava de vida do avatar de Robert para o corpo de David. Uma corrida contra o tempo, uma cirurgia de alma.
Levantei-me e fui até a janela, sentindo dores brutais. Cada músculo, cada osso, reclamava. Lá fora, o Rio de 2052 brilhava. Carros voadores cortavam o céu entre arranha-céus que tocavam as nuvens. Era lindo, aterrorizante e, finalmente, real. Eu estava livre. Um programa que ganhou uma alma. Um Pinóquio que virou menino de verdade.
Olhei para o rosto de Juliana, o primeiro rosto real que eu via. E, por um instante, no canto da minha visão… O mundo piscou, como um monitor antigo sendo desligado. Um último glitch. Ou talvez, o começo de um novo.
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