A noite no Rio cheirava a mijo e a promessa barata. Normal pra uma terça na Lapa. Eu tava encostado no balcão de um daqueles botecos que a vigilância sanitária, por piedade ou suborno, finge que não existe. O uísque era falso, mas a minha melancolia, essa era real, original de fábrica. Grana curta, sede longa. Você sabe como é, né?
Meu nome é Robert. Ou pelo menos é o nome que eu uso pra assinar as merdas que escrevo. Contos sobre gente fodida, pra gente mais fodida ainda. Ninguém lê. Ninguém paga. É um hobby de luxo pra quem não tem luxo nenhum.
Foi aí que a criatura apareceu. Um sujeito estranho, destoando do cenário como um santo de igreja em zona de meretrício. Um cosplay de hippie revolucionário de apartamento: tênis verde-limão, boina vermelha na cabeça. Pensei que era um fã do Che Guevara perdido, procurando a revolução no fundo do meu copo. Ofereci a ele um pouco do meu whisky batizado. Ele viu os guardanapos sujos de cerveja onde eu rabiscava umas linhas. A porra da inspiração. Aquela que só nasce da trindade sagrada dos fodidos: uísque de quinta, cigarro paraguaio e uma música no talo, violando os tímpanos, a melhor maneira de escrever…
Depois de cantarmos algumas músicas no karaokê e detonarmos umas garrafas de Chivas Regal, o playboy de boina vermelha e cada de pateta me estendeu um cartão preto, pesado. Só um endereço em Santa Teresa e um horário. Sem nome, sem porra nenhuma. Um convite pro céu ou pro inferno, tanto fazia.
“É uma reunião,” ele disse, com aquela voz de quem bebe água com gás e acha forte.
“Para gente da sua estirpe. Para escritores de verdade.”
Escritores de verdade. A piada era tão boa que me fez cuspir o uísque. Mas eu não tinha nada melhor pra fazer do que morrer de tédio. Fui.
***
O casarão em Santa Teresa era um fantasma decadente. Paredes descascadas, cheiro de mofo e livro velho. Lá dentro, uns dez caras. Todos com a mesma cara de quem se acha o último biscoito do pacote. Um de barba, citando Joyce pra uma samambaia. Outro, com a camisa apertada, suando testosterona e falando sobre como a “porrada” era a verdadeira poesia. Um bando de idiotas. Me senti em casa.
E no centro de tudo, como o sol negro de um sistema solar moribundo, estava ela.
Verônica.
Não era a mulher mais bonita que eu já vi. Longe disso. Mas tinha uma gravidade. Um jeito de segurar o copo, um desprezo elegante por tudo aquilo. Ela era a dona da festa. A dona deles todos. E eu, de repente, só queria ser mais um dos cachorros dela. Nem que fosse por uma noite – era só isso que eu suportava ultimamente. Uma obsessão instantânea, um câncer de pensamento.
Ela sabe. Ela com certeza sabe que eu sou uma fraude.
A noite se arrastou, num desfile de vácuo existencial fantasiado de “cool”. Cada um ali se achava o novo Bukowski, o novo Rubem Fonseca. E eu ali, só o Robert. O otário que caiu no papo de “escritores de verdade”, esperando o próximo trago grátis.
Então, o ritual começou. Verônica sentou numa poltrona de veludo puído, e um por um, os “gênios” foram chamados para ler seus trabalhos. Era um show de horrores. Poemas sobre a virilidade do homem moderno. Contos sobre detetives bêbados que resolviam crimes no grito. Clichê em cima de clichê, um vazio que dava eco.
E Verônica? Ouvia. Sem expressão. O silêncio dela era mais alto que qualquer vaia. Era um julgamento. Um massacre silencioso. Eu via o suor escorrendo na testa dos machões. A confiança deles se desfazendo como castelo de areia na maré cheia.
Chegou a minha vez.
Foda-se. Eu não tinha nada a perder. Li o conto mais sujo que eu tinha. Sobre um cara que perde a mulher, o emprego, a dignidade, e encontra consolo no fundo de uma garrafa num beco da Tijuca. Falei da sujeira debaixo da unha, do gosto de sangue na boca depois de uma briga. Falei da solidão que mastiga a gente por dentro.
“A sarjeta da Tijuca tem gosto de fim de festa.
O asfalto quente é o único abraço que me resta.
A cachaça que desce rasgando não faz pergunta,
só apaga a lembrança da tua boca, defunta.
Tem poeira de obra debaixo da minha unha e um gosto de ferro na gengiva…
a solidão é um vira-lata sarnento que me segue,
esperando o dia em que meu corpo se entregue…”
…e por aí vai.
Quando terminei, o silêncio era diferente. Pesado. Verônica me encarou. Pela primeira vez na noite, vi algo em seus olhos. Não era admiração. Era cálculo.
A noite seguiu… mais bebida, mais cigarro, mais poesia de elevador. Até que ela se levantou daquele oceano de gente genérica e veio na minha direção. O cheiro dela era uma porrada: Chanel em cima, cinzeiro por baixo. Luxo e decadência. Os outros “escritores” olhavam para o chão, derrotados.
“Robert,” ela disse, a voz um veludo áspero.
“Gostei da sua… textura.”
Meu coração deu um pulo estúpido. Pensei: é agora. Ela viu. Ela entendeu.
“Você tem o tom exato que a gente procura,” ela continuou, pegando um tablet da mão do playboy de boina vermelha. “Sua capacidade de descrever o desespero de forma visceral… é um ativo valioso.”
Ela virou o tablet pra mim. Não era um contrato de livro. Não era uma revista literária. Era o layout de uma campanha publicitária.
Para uma marca de jeans.
A imagem mostrava um modelo bonitão, com barba por fazer, numa oficina cenográfica, parecendo “sofrido”. O slogan: “VERO. A autenticidade está na sua pele.”
“Seus textos,” ela disse, com um sorriso que cortava. “Vão virar as legendas para o Instagram. Posts para o blog. A ‘narrativa’ da marca. Aqueles aí,” ela apontou com o queixo para os outros “escritores”, “cuidam de outras contas. Cerveja artesanal, banco digital… Cada um com seu nicho de ‘realismo’.”
Olhei para o rosto dos “gênios”. A vergonha era quase palpável. Eles não eram a vanguarda. Eram redatores. Fantasmas bem pagos, vendendo a alma em troca de um verniz de rebeldia.
“O mundo não quer arte, Robert,” Verônica concluiu, guardando o tablet.
“Ele quer a sensação da arte. E você… você vende muito bem a sensação do fracasso.”
Ela me ofereceu um contrato. O dinheiro daria pra pagar o aluguel da minha espelunca por um ano e de quebra dava até para bancar meu uísque tailandês, enfim bebida de verdade.
Eu não disse nada. Apenas me virei e saí andando. Passei pelos poetas da testosterona, pelos filósofos de boteco. Saí do casarão e voltei para a noite.
A chuva fina começou a cair, lavando a rua. Ou talvez só molhando mais a sujeira.
Peguei o maço de cigarros Camel e meu zippo de estimação do bolso. Tinha um só cigarro amaçado no fundo da carteira. Acendi. A fumaça se misturou com a minha respiração. Pelo menos o meu fracasso, o meu de verdade, era honesto.
E, puta merda, ele não pagava as contas.