Em meio à decadência da Lapa, um encontro visceral reacende a faísca da vida em um cínico incurável. Prepare-se para uma história sem finais com unicórnios, mas com a crueza e a intensidade da vida real.
Ok, camarada, segura essa. Vou te contar uma história. Não daquelas com final com unicórnios cagando arco-íris. A vida real não é assim, e se alguém te disser o contrário, tá querendo te vender alguma porcaria.
Meu nome é Robert. Ou pelo menos é o que eu digo por aí. A verdade é que nem eu sei mais direito quem eu sou, tantos lugares, identidades, funções, relações. Na verdade amontoado de carne, osso, acertos e poucos arrependimentos, provavelmente. E naquele dia, ou melhor, naquela noite, eu tava chafurdando na minha própria merda, como de costume. O palco da minha desgraça? Um boteco fétido na Lapa, desses que o cheiro de mijo e cerveja barata impregna até a alma. “Sinuca Urca”, o letreiro piscava, uma promessa de perdição barata. Eu gostava. Tinha uma honestidade na decadência que os lugares chiques nunca teriam.
Abaixo a hipocrisia!
A vida é um soco no estômago quando você menos espera. Ou talvez ela seja só uma garçonete mal paga servindo cerveja quente num inferninho na Lapa. Tanto faz. Eu tava lá, cotovelo apoiado na mesa engordurada, cinza de cigarro formando uma pequena montanha russa ao lado do copo. O mundo podia estar desabando lá fora, e provavelmente estava, mas eu só queria mais uma dose. E talvez um motivo pra não enfiar a cabeça num forno.
Aí ela entrou.
Vocês sabem do que eu tô falando, né? Aquela que faz o tempo parar, que faz o barulho do salão sumir e a única coisa que importa é a maneira como a luz fraca e piscante do bar bate nos cabelos dela. Ela não era uma beldade clássica, dessas de capa de revista que parecem ter sido montadas em laboratório. Não. Tinha algo de selvagem nela, uma faísca nos olhos que dizia “foda-se o mundo, eu faço minhas próprias regras”. E, caralho, como eu gostava de regras quebradas.
Ela se moveu pelo salão como uma pantera. Calça jeans justa que desenhava curvas que fariam um santo pecar e uma blusinha simples, preta, que parecia gritar “olhe, mas não toque… ainda”. Parou no balcão, pediu uma cachaça. Pura. Gostei disso. Sem frescura. Os cabelos eram escuros, meio bagunçados, como se tivesse acabado de sair de uma cama – ou estivesse indo pra uma. Provavelmente a minha, se eu jogasse minhas cartas direito. Ou errado, dependendo do ponto de vista.
– Robert, seu velho cínico. Pensei, dando uma tragada funda no cigarro.
– Será que ela é areia demais pro teu caminhãozinho capenga? Mas aí, aquela vozinha lá no fundo, aquela que se parece com o “Joe Goldberg” quando ele tá escolhendo a próxima vítima – só que sem a parte da jaula de vidro e do porão, claro, eu não sou desse tipo de doente – começou a analisar.
Observa o jeito que ela segura o copo. Dedos longos, unhas pintadas de um vermelho sangue. Forte. Decidida. Ela não tá aqui por acaso. Ninguém vem pra um buraco como o Sinuca Urca por acaso numa terça à noite. Ela tá procurando alguma coisa. Ou fugindo de algo. Talvez só queira o mesmo que você, Robert: um pouco de calor humano antes que o mundo acabe.
Os olhos dela varreram o lugar. Por um instante, cruzaram com os meus. Um arrepio. Não desses de filme romântico barato. Um arrepio de reconhecimento. Como dois lobos se farejando na escuridão. Ela desviou o olhar, um sorrisinho quase imperceptível no canto da boca. Ah, ela sabia. Ela sabia que eu estava olhando. E gostava.
Eu me sentia meio “Travis Bickle” às vezes, sabe? Vagando pela cidade, observando a sujeira, sem pertencer a lugar nenhum. Mas Travis queria limpar a sujeira – e de uma forma pouco ortodoxa. Eu só queria me afogar nela, de preferência com uma boa companhia. E ela, ah, ela parecia ser a companhia perfeita pra um mergulho no abismo.
Me levantei, ajeitei a jaqueta de couro surrada que já viu dias melhores – e noites piores. Caminhei até o balcão, sem pressa. Pedi outra dose. “Pra mim e pra moça”, eu disse, a voz mais rouca que o normal por causa do cigarro e da falta de uso.
Ela se virou, me encarou de cima a baixo. Aqueles olhos de novo. Pareciam ter a profundidade de um oceano escuro. “Achei que não ia se apresentar”, ela disse, a voz suave, mas com um toque de ironia.
– Robert, estendi a mão.
– Lívia, ela respondeu, apertando minha mão.
A pele dela era macia, mas o aperto era firme.
– Então, Robert, o que um cara como você faz num lugar como este?
– Tentando esquecer que caras como eu existem. Respondi, e ela riu. Uma risada gostosa, que fez alguma coisa se mexer dentro de mim, algo que eu achei que já estava morto e enterrado.
Conversamos. Sobre nada e sobre tudo. Sobre a merda que era a vida, sobre a beleza que se escondia nos lugares mais feios, sobre como a cidade do Rio de Janeiro era uma amante cruel e maravilhosa. Ela era inteligente. Rápida. Cada resposta dela era um dardo certeiro. E quanto mais ela falava, mais eu a queria. Não só na minha cama. Queria devorar a alma dela, entender o que fazia aqueles olhos brilharem daquele jeito.
Ela usa um perfume sutil, quase imperceptível. Algo floral, mas com uma nota amadeirada por baixo. Não é perfume barato, uma das fragrâncias da Chanel. Ela tem bom gosto. Mas o que ela está fazendo aqui, então? Procurando autenticidade? Cansada dos playboys da Zona Sul? Ou talvez ela seja como eu, uma alma perdida procurando outra pra se esbarrar na escuridão. Sim, é isso. Ela vê o mesmo vazio em mim que eu vejo nela. Ou talvez eu só esteja projetando minhas próprias carências num rostinho bonito. Clássico, Robert. Clássico.
A noite se arrastou, regada a mais cachaça e olhares que prometiam mundos. O bar foi esvaziando. O cheiro de fritura e desespero começou a ficar mais forte. Normal.
– Vamos sair daqui? ela sugeriu, a voz um pouco mais rouca agora, os olhos fixos nos meus.
Meu apartamento não era longe. Um cubículo próximo de Santa Teresa, com vista para os telhados e para os problemas dos outros. Mas tinha uma cama e, naquela noite, era tudo que importava.
O caminho foi silencioso. A tensão entre nós era palpável, quase elétrica. Subimos as escadas rangentes do meu prédio. Cada degrau era um passo a mais na direção do inevitável. Abri a porta e ela entrou, sem hesitar. Olhou em volta. Meu cafofo não era exatamente um palácio. Livros empilhados, garrafas vazias, a eterna desordem de um homem que desistiu de fingir que se importa.
“Aconchegante”, ela disse, com aquele mesmo sorrisinho irônico. Mas não havia desprezo na voz dela. Havia… curiosidade?
Então, aconteceu. Não teve delicadeza. Teve fome. Teve a urgência de dois náufragos se agarrando a qualquer coisa que flutuasse. As roupas foram arrancadas, jogadas no chão como peles velhas. Os corpos se chocaram com a força de uma colisão. A pele dela era quente, macia sob meus dedos ásperos. O cheiro dela me embriagava, uma mistura do perfume caro com o suor e o desejo.
Beijos selvagens, mordidas, arranhões. As unhas dela cravando nas minhas costas, a minha boca explorando cada centímetro do corpo dela, descobrindo os gemidos que ela tentava abafar. Era cru. Animal. Sem palavras doces, sem promessas vazias. Apenas o atrito dos corpos, o som da respiração ofegante, o ritmo frenético dos quadris se encontrando. Ela se movia embaixo de mim, ou sobre mim, com uma entrega que me deixava tonto. Os olhos dela, mesmo na penumbra, brilhavam com uma intensidade quase febril.
Cada toque era uma descarga elétrica, cada gemido dela era música para os meus ouvidos fodidos. Ela cavalgava em mim como se não houvesse amanhã, os cabelos escuros grudados na testa suada, os seios fartos roçando no meu peito a cada investida. Era como se estivéssemos tentando nos fundir, nos perder um no outro, apagar a solidão que nos consumia. Eu a queria mais, sempre mais. Queria sentir o gosto dela, o cheiro dela, queria que ela me marcasse de um jeito que nenhuma outra mulher jamais fez.
Quando o clímax veio, foi como uma explosão. Uma pequena morte. Corpos trêmulos, respiração entrecortada, o silêncio pesado do depois. Ficamos ali, embolados na cama, o suor esfriando na pele. Por um momento, um breve e fodido momento, eu quase me senti… completo. Quase.
O sol da manhã, aquele intruso insistente, começou a vazar pelas frestas da persiana. Lívia se mexeu ao meu lado. Abriu os olhos. Aqueles olhos. Ainda tinham o brilho da noite anterior, mas agora misturado com uma suavidade sonolenta. Ela sorriu, um sorriso genuíno dessa vez, sem ironia. Um sorriso que me pegou desprevenido.
Ficamos ali, em silêncio por um tempo. Não o silêncio constrangedor do “o que acontece agora?”. Era um silêncio confortável, preguiçoso. O cheiro dela ainda estava em mim, nos lençóis, no ar. Era bom. Bom demais pra ser verdade, provavelmente.
Ela se espreguiçou, como uma gata satisfeita.
– Preciso ir. Disse baixinho, quase um sussurro. Não havia pressa na voz dela, nem desculpa. Apenas um fato. Assenti. Eu sabia. Noites como aquela não eram feitas pra durar. Eram como estrelas cadentes: um brilho intenso e rápido, depois a escuridão de sempre. Tentar segurá-las era pedir pra se queimar.
Ela se levantou, nua, e caminhou pelo quarto com uma naturalidade desconcertante, pegando as roupas do chão. Observei cada movimento. A curva das costas, o jeito como o cabelo caía sobre os ombros.
Grave isso na memória, Robert. Porque sobre essa aí é tudo que vai te restar.
Vestiu-se devagar. Parou na porta, já pronta pra ir. Olhou pra mim, um olhar longo, indecifrável.
– Foi… intenso, Robert. Ela disse, finalmente.
– Intenso é um bom começo. Respondi, tentando manter a voz firme.
Ela deu um último sorriso, aquele que me desmontava.
– Se cuida.
– Você também, Lívia.
E então ela se foi. Sem promessas, sem números de telefone trocados, sem planos para um futuro que ambos sabíamos que não existia para pessoas como nós. A porta se fechou com um clique suave, e o apartamento pareceu subitamente mais vazio, mais silencioso. O cheiro dela ainda pairava no ar, mas já começava a se dissipar, como fumaça.
Fiquei ali, deitado na cama bagunçada, o sol agora batendo forte no meu rosto. Sozinho de novo. Mas não era o mesmo tipo de solidão de antes. Havia uma diferença, uma lembrança quente e vívida.
Nunca mais a vi.
Às vezes, quando aquela dose de Whisky ou do meu lendário jagermeister bate mais forte ou o clima tropical e louco do rio aperta demais o nó na garganta, eu me pego procurando por ela nos bares sujos da Lapa, nos rostos anônimos da multidão. Em vão, claro. Ela era como um sonho bom, desses que a gente acorda com um gosto doce na boca, mas que se esvai com a luz do dia.
Lívia. Ela se tornou uma lenda particular na minha biografia de pequenas vitórias. Uma lembrança fodidamente sexy de uma noite em que o mundo pareceu um pouco menos cinza, um pouco mais vivo. Uma prova de que, mesmo num velho cão sarnento como eu, ainda havia espaço para um brilho fugaz, uma faísca.
O sol da manhã continuava a me fustigar. Mais um dia. Mais uma cerveja quente esperando em algum balcão sujo. A vida seguia seu curso de merda. Mas, de vez em quando, no meio do tédio e do cinismo, a imagem dela voltava: o sorriso, os olhos, o jeito como ela se movia. E, por um instante, a lembrança era quase tão boa quanto a realidade. Quase. E pra um cara como eu, isso já era coisa pra caralho.