150 km/h.
O ponteiro do velocímetro tremia, colado no limite. A noite era um breu lá fora, engolindo a estrada. Eu estava com pressa, muita pressa. Uma pressa que me corroía por dentro, um bicho faminto roendo as entranhas. Tinha que chegar. Só a urgência, um martelo batendo na cabeça, me empurrava pra frente. O motor roncava, um monstro metálico cuspindo fumaça e promessas vazias.
Essa estrada. Uma tripa de asfalto no meio do nada. Ladeada por um mato seco que parecia arranhar a lataria do carro só com o olhar. As faixas, fantasmas amarelados, já quase engolidas pelo breu. Um caminho de rato, sabe? Sem queijo no final. Só a porra da ratoeira. E eu acelerando em direção a ela.

A estrada sumiu. O carro guinchou, perdeu o controle, e a escuridão me engoliu.
Um barranco. Lama. O cheiro de terra molhada e metal retorcido. O carro despencou, um bicho de aço e borracha ferido rolando ladeira abaixo. O impacto. Um baque surdo, o mundo virando de cabeça pra baixo e ela, a dor. Uma explosão de estrelas na minha cabeça. E então, o silêncio. Um silêncio pesado, sufocante, como um cobertor molhado.
Acordei. A cabeça latejava, um tambor batendo no crânio. O cheiro de gasolina e sangue. Tentei ligar o carro. A chave girou, o motor tossiu, engasgou e ligou. Um milagre. Mas o carro estava todo amassado, um monte de lata velha. O medo de rasgar os pneus, de ficar preso ali, no meio do nada, me fez sair. A porta rangeu, um gemido de metal.
Não conseguia lembrar. Por que a pressa? O que eu estava fazendo? A memória era um buraco negro, um vazio que me engolia. Apenas a névoa. Apenas o nada, somente a maldita dor de cabeça. Comecei a andar para o meio da floresta. Sob a chuva fina que começava a cair, a escuridão era um manto pesado. Procurando ajuda, ou talvez, procurando uma resposta. Qualquer coisa que fosse.
Lá estava ela. A loira. Atrás do balcão, a luz fraca da lâmpada pendurada iluminava o rosto dela. Pálida, quase translúcida, como um fantasma de porcelana. Os olhos, azuis como gelo, arregalados, mas sem brilho, como se tivessem visto demais, ou de menos. Os cabelos, um emaranhado de fios loiros desbotados, caíam sobre os ombros magros. Um vestido simples, cinza, que parecia ter sido feito para esconder, não para mostrar. Ela era a imagem da solidão, da espera, da resignação. Uma flor murcha num vaso empoeirado. Ela se assustou quando falei com ela. Ficou branca de medo, como se eu fosse a própria morte batendo à porta. Mas mesmo assim, me atendeu. A voz dela era um sussurro, um fiapo de som, como o vento soprando em um túmulo.
“Estou há muito tempo sozinha nesta tempestade.” Ela pegou um livro velho, de capa de couro, e uma caneta. “Nome?” ela perguntou, a voz quase inaudível. “Robert”, eu disse. Apenas Robert. O nome soou estranho, quase alheio, na minha própria boca.
Pedi para usar o telefone dela. Precisava de ajuda. Precisava de um sinal.
“Sem sinal”, ela disse, a voz quase inaudível. “A tempestade cortou tudo.”
Pedi um quarto. Qualquer coisa. Um buraco pra me esconder do mundo, da chuva, de mim mesmo. Ela hesitou.
“Só temos no porão.”
“Por que não posso subir?” Perguntei, a paciência se esgotando.
“Não tenho a chave”, ela disse, os olhos fixos nos meus.
“E a que está no chaveiro não funciona.” Uma desculpa esfarrapada. Mas eu estava cansado demais pra discutir. Cansado de tudo. Cansado de viver.
“Fique no 169. É o último quarto no fim do corredor”.
Desci. A escada de madeira rangia a cada passo, um gemido de dor. O cheiro de cravo ficava mais forte, quase insuportável. O porão era escuro, úmido, com cheiro de mofo e coisas velhas. Um lugar onde os pesadelos se escondem. O quarto no porão era um buraco. Uma cama velha, um armário rangendo, uma janela pequena e suja que dava para o nada. A luz era fraca, uma lâmpada solitária pendurada no teto, piscando como um olho moribundo. Deitei na cama. O colchão era duro, cheirava a poeira e abandono. Mas o cansaço era maior que qualquer desconforto. Fechei os olhos.
Foi então que começou. Um arrastar. Um sussurro. Parecia vir de dentro das paredes, debaixo da cama. Um som úmido, pegajoso, como algo se arrastando em carne viva. O sussurro, um sopro frio na nuca, parecia chamar meu nome, mas sem voz, apenas a intenção. Sons que não eram sons, mas sensações que se infiltravam na pele, arrepiando cada pelo do corpo. Aquele tipo de coisa que te faz questionar a própria sanidade, que te faz sentir a podridão do mundo. A parte sã da minha mente, o pedaço que ainda pagava impostos e lembrava senhas, tentava montar o quebra-cabeça. Mas a lógica aqui era um bicho peçonhento rastejando no escuro. Cada som era uma mordida nova, e meu cérebro, encurralado, só conseguia farejar o ar, tentando adivinhar de onde viria o próximo bote.
Ouvi passos. Pesados. Molhados. No corredor. Depois, no quarto. Um som de carne batendo no chão, úmido, arrastado. Como se alguém estivesse andando em círculos ao meu redor, mas sem pernas, apenas um corpo se arrastando. O ar ficou pesado, denso, com cheiro de mofo e carne em decomposição, como se a própria escuridão tivesse ganhado corpo. As coisas se mexiam. A porta do armário abriu e fechou, um rangido agudo que cortava o silêncio, revelando um vazio ainda mais profundo. A cortina da janela balançou, mesmo sem vento, como se uma respiração gélida a movesse. Eu sentia olhos em mim. Milhares deles. Me observando. Me julgando. Olhos invisíveis, mas que queimavam na minha pele. Minha mente, que antes era um labirinto de pensamentos cínicos, agora era um campo de batalha. Eu tentava racionalizar, encontrar uma explicação. Mas não havia. Era o puro, o visceral, o inexplicável. O medo me corroía, um ácido queimando por dentro, dissolvendo minha coragem. Eu me sentia como um rato encurralado, esperando o golpe final, o ranger dos dentes, o estalo dos ossos.
Não aguentei. A adrenalina me impulsionou. Corri. Pra fora do quarto, pra fora do porão, pra fora do hotel. A chuva caía forte, lavando a sujeira do mundo, mas não a da minha alma. Lá fora, sob a tempestade, a luz de um relâmpago revelou. Um cemitério. Antigo. As lápides tortas, os anjos de pedra com os olhos vazios. Um lugar onde os mortos descansam. Ou não.
E então, a vi: a loira da recepção. Debaixo da chuva, triste, com um buquê de cravos nas mãos. Ela caminhava lentamente, como se estivesse flutuando, em direção ao cemitério. O cheiro de cravo, que antes vinha da recepção, agora vinha dela. Forte. Enjoativo. Um cheiro de velório, de flores mortas, de algo que tenta mascarar a putrefação.
Eu a segui, escondido entre as tumbas, as cruzes tortas, os anjos de pedra com os olhos vazios, corroídos pelo tempo e pela chuva ácida. O cemitério era um labirinto de sombras e silêncio, onde a terra parecia respirar um ar pesado de morte. Onde os mortos dormem. Ou não. Cada passo meu afundava na lama, um som úmido e nojento. Ela parou em frente a um jazigo. Deixou as flores. E então, desapareceu. No ar. Como fumaça. Como se nunca tivesse estado ali. Meu coração batia como um tambor de guerra, um ritmo frenético no peito. A garganta seca, arranhando. Fui até o túmulo. A foto… Era a foto dela! A loira da recepção. Sorrindo. Mas um sorriso vazio, sem vida, como o de um boneco de cera. No jazigo, o nome. E a data. Uma data antiga. Muito antiga.
Ouvi um som e me virei, e lá estava ela, atrás de mim. Os olhos fixos nos meus. O mesmo olhar do lobo que me atravessou na estrada. O mesmo olhar que me fez desviar. O mesmo olhar que me trouxe até aqui. Sem vida. Sem alma. Aquele cheiro de cravo, agora misturado com o cheiro de terra molhada e algo mais, algo podre, que vinha dela.
No instinto, fugi. Corri. Pelo cemitério, entre as lápides, os fantasmas de um passado que não era meu. A lama espirrava, sujando minhas calças, meu rosto. Ela corria atrás de mim. Os passos dela, leves, quase inaudíveis, mas eu os sentia. Cada um deles. Como se fossem pregos martelando na minha cabeça. O medo me impulsionava. O puro, o visceral, o animal. O terror me fazia correr, mesmo quando minhas pernas já não respondiam.
Passei do hotel, adentrei a floresta, corri até o carro, com as gotas da chuva como navalhas rasgando a pele do meu rosto. A lata velha estava no mesmo lugar que a deixei. Tentei ligar. A chave girou. O motor tossiu. Ligou. Mas ele não se mexia. Preso. No barranco. Na lama. No inferno. Ela chegou. Parou ao lado do carro, ao lado da janela do motorista.
Ela ergueu a mão e o motor simplesmente morreu. O silêncio. Pesado. Sufocante. Apenas o som da chuva. E o cheiro de cravo.
Saí do carro. Tentei correr. A lama grudava nos meus pés, me puxando pra baixo. Ela gritou.
“Pare!”
A voz dela, antes um sussurro, agora um trovão que ecoava na floresta. Eu me ajoelhei. Derrotado. A chuva lavava meu rosto, misturando-se com as lágrimas que eu nem sabia que estava chorando.
Ela se aproximou. O cheiro de cravo era esmagador, nauseante.
“Eu estou morta”, ela disse, a voz calma, quase doce. “Há muito tempo.”
Minha mente girava. Morta? Como assim? Eu não entendia. Nada fazia sentido. Era como se o mundo tivesse virado de cabeça pra baixo, e eu, um pobre coitado, estivesse preso no meio. Minha vida tinha virado um roteiro escrito por um louco. E eu era o ator principal, sem ter lido as falas, empurrado para o centro de um palco bizarro onde os mortos conversavam e a chuva tinha gosto de cinzas. Cada segundo era a espera de uma nova bofetada do impossível.
“Olhe para o seu carro”, ela disse, apontando para a lata velha no barranco.
“Está amassado”, eu disse, a voz embargada.
“Está queimado”, ela corrigiu, a voz firme.
“Você está mentindo! O carro está só amassado!” Eu gritei, a raiva misturada com o desespero.
“Olhe com atenção”, ela insistiu. “No banco do motorista.”
Eu olhei. A chuva batia no para-brisa quebrado. No instante em que foquei a visão, um relâmpago rasgou o céu. O clarão branco inundou a cabine por um segundo, um flash de necrotério que foi o suficiente para revelar o que estava lá dentro. E lá estava. Meu corpo. No banco do motorista. Em um avançado estado de decomposição.
A pele esverdeada, inchada, com bolhas de gás. O cheiro de carne podre, de morte, invadia minhas narinas, um fedor que grudava na garganta. Os olhos, vazios, vidrados, encaravam o nada. Boa parte do corpo queimada, a carne carbonizada, preta, com pedaços de osso expostos. Como se estivesse morto há meses. O cheiro. Não era mais o cheiro de cravo. Era o cheiro da morte. O cheiro de mim.
“Quando se está morto”, ela disse, a voz suave, quase um lamento, “as horas que você fica acordado equivalem a semanas no mundo dos vivos. Os sons que você ouviu no quarto são os hóspedes vivos que estão vivendo no hotel.”
O mundo desabou. Não era uma metáfora. Era real. A chuva, antes um mero incômodo, agora era um dilúvio de lágrimas celestiais, lavando a última gota de esperança. O cheiro de cravo, antes um mistério, agora era o perfume da minha própria podridão. O cemitério, antes um cenário de terror, agora era meu lar. Eu estava morto. E a verdade, essa puta desgraçada, me atingiu como um raio. O desespero me sufocou, um nó na garganta, um grito preso no peito. Eu via a chuva, as árvores, o carro queimado, mas tudo era um borrão, uma pintura distorcida. Minha mente, antes um labirinto de negação, agora era um espelho, refletindo a imagem grotesca da minha própria morte.
E então, a lembrança. Um flash. O assalto. Tiros. A correria. A sirene da polícia. A adrenalina. A pressa. A pressa de fugir. A pressa de viver. A pressa que me levou à morte. Um assalto mal executado. Uma vida mal vivida. Tudo se encaixou. O lobo, o carro, o hotel, a loira. Tudo parte de um pesadelo que era real. E eu, o protagonista, estava preso nele.
“O que devo fazer agora?” A pergunta saiu como um sussurro. A voz de um homem que perdeu tudo. Até a própria vida. Ela esticou a mão. Pálida. Fria. Cheirava a cravo.
“Venha”, ela disse. “Vou te guiar nessa nova fase de sua existência.”
Eu dei a mão para ela. Não havia mais nada a perder. Não havia mais para onde correr. Juntos, caminhamos em direção à névoa densa da floresta, desaparecendo na fumaça.